O enigma das vacinas
Editorial Folha de S. Paulo
Reveste-se de enorme gravidade a constatação de que recua no Brasil o índice de cobertura de vacinas obrigatórias para crianças. Um país cujo programa de imunização há pouco era exemplo mundial de eficiência parece caminhar para trás, de forma brusca e misteriosa.
A queda se concentra no período 2015-2017. Antes disso ocorriam variações de ano a ano, mas em torno de 95% da população alvo, como recomendam epidemiologistas.
Abaixo dessa marca, os vírus voltam a circular e ressurge o risco de surtos. Alguns já se materializaram, como os de sarampo.
Essa virose, da qual o país supostamente está livre, se combate com dois tipos de vacina, a trivalente (sarampo, caxumba e rubéola) e a a tetravalente (incluída a varicela). No primeiro caso, após 12 anos com cobertura beirando 100%, a imunização caiu para 96% em 2015, 95% em 2016, e 84% em 2017.
Exemplo similar oferece a poliomielite. De 98% em 2015, despencou-se para 77% dois anos depois. Idem a gastroenterite por rotavírus: de 95% para 75%.
Nem mesmo com a febre amarela, cujo aparecimento perto de centros urbanos fora das áreas de risco suscitou algo próximo do pânico, logrou-se o nível de proteção almejado. O ideal seria vacinar 80%, mas não fomos além de 55%.
O mais preocupante nessa involução não são os números, mas a incapacidade de explicá-los. Especialistas do Ministério da Saúde aventam como hipóteses um falso sentimento de segurança na população, fruto do sucesso passado no controle dos vírus, e dificuldades para se deslocar até os postos de saúde nos horários oferecidos.
Não se pode excluir que tais fatores estejam influindo, porém não há elementos para assegurar que possam explicar, por si sós, o retrocesso abrupto após 2015.
Os horários não mudaram de um ano para o outro. E por que os pais teriam passado a desprezar as doenças da infância e a negligenciar os riscos para a saúde de seus filhos precisamente naquela quadra?
Ninguém apareceu ainda com uma explicação convincente. Talvez a crise econômica e política vivida desde então tenha pesado de alguma forma, mas qual?
Também há o temor de que boatos e informações falsas sobre vacinas estejam prosperando, por assim dizer, sob o radar das autoridades. Não se deve subestimar a facilidade para propagar bobagens anticientíficas nas redes sociais.
Vacinas não causam autismo, como especulou nos anos 1990 um médico britânico que depois teve a licença cassada. A da febre amarela, temida por alguns, é segura.
Compete ao governo disseminar mais e melhor tais verdades sobre imunização, mas também encetar uma investigação profunda das reais causas da preocupante tendência de baixa que se observa.