Passando a boiada e chorando a morte da bezerra
Alceu A. Sperança
Quando os visitantes chegam a Rolim de Moura, cidade criada pelo Incra em Rondônia, surpreendem-se com ruas largas, de cem metros, incomuns em outras cidades da região.
Deu-se que o jovem economista Silvio Persivo, ao estudar a área para abrir a cidade, observou que ela ficaria junto a um riacho cujos moradores sofriam uma epidemia de malária.
Seria impossível fazer a cidade ali, pois os assentados, provenientes de outras regiões, também seriam vítimas muito províveis da malária.
Alguém disse ao técnico do Incra que o anofelino (mosquito transmissor da doença) só aguentava voar 70 metros e já morria.
Pura lógica, a primeira rua a cem metros do riacho seria a solução para o mosquito, que morreria ao tentar cruzá-la.
Foi assim, sem combinar com o mosquito, que Persivo, o engenheiro encarregado e o chefe das máquinas abriram a primeira rua com 100 metros de largura.
Tudo tem consequência
Trés meses depois, Persivo retorna a Rolim de Moura e encontra uma populaçãoo de doze mil habitantes. Constata, com surpresa, que as demais ruas abertas seguiram o mesmo padrão de largura que ele havia determinado.
E a malária comendo solta: o mosquito aprendeu a voar mais de 70 metros sem morrer...
Quando só um decide, governos erram, povos erram, todos erram. É muito fácil se iludir. Deixar nas mãos de um só indivíduo, incapaz de pesar na balança as variáveis necessárias para uma decisão refletida, é a receita para o desastre.
Quem decide sozinho e enlouquece, como o presidente Delfim Moreira, ou sofre aquele famoso minuto de bobeira, acaba condenando sua comunidade a séculos de desgraça.
Deve haver alguma forma de melhorar a governança sem que muitos precisem sofrer as idiossincrasias de poucos. A questão é achá-la: parlamentarismo, voto de confiança, desconfiança, mandatos revogáveis?
Plateia desprivilegiada
Neste mundo pandêmico, criou-se uma nova forma de governar, em que as alas internas de um palácio fazem o papel simultâneo de governo e oposição.
Os grupos de fora, que deveriam ser de fato a oposição, ficam só assistindo aos embates internos entre as alas (boi, bala, bíblia, terraplanista, astronâutica, ideológica) como se fossem a plateia de um jogo do qual estão marginalizados e torcem pelo "menos pior", uma impossibilidade óbvia.
Alguns itens observáveis nos governos de hoje é que o planejamento virou pó. Governar era abrir estradas nos tempos de Washington. Nos tempos, digamos, de Boston, governar é pedagiar e disfarçar impostos.
No mais, sem conseguir enfrentar a pandemia nem dar jeito na economia, governar, de Washington a Brasília, passando por Londres, Moscou, Tóquio ou Paris, é insultar adversários e fazer gambiarras.
O que mais caracteriza os governantes é a rapidez com que mudam de ideia: começam negando o vírus, depois cloroquinam e por fim se vacinam.
Feche o STF, mas não minha loja!
Sob pressão da mídia e da Justiça, o governo brasileiro garantiu que não iria comprar a vacina chinesa, mas em seguida não só a compra aos milhões como implora por mais doses e até vacina as mães.
Num minuto, governantes repudiam a máscara, acusada de não proteger ninguém, mas logo depois aparecem usando a inútil e dando o mau exemplo.
Lockdown num dia, para não aglomerar, no outro dia os ônibus lotados para encovidar os pobres.
Os que precisam trabalhar viram bombas ambulantes: levam a morte para dentro dos próprios lares, vizinhança, igrejas e postos de saúde nos quais vão se queixar de unha encravada. A caminho de lá, se já não estão covidados, ficam.
Reprimem baladas antes que o galo cante três vezes, mas não têm solução para o drama dos jovens que se deprimem presos em casa.
Fecham por obrigação, abrem na pressão, abrem-fecham pensando na eleição.
Só não há incerteza numa coisa: o chefe está sempre certo. Errados e corruptos são os outros. Cortam verba para tudo, mas reforçam a grana da autopropaganda, alma do negócio.
Sim, talvez, não: três em um
Como dizem em diferentes ocasiões sim, talvez e não, aquilo que mais der certo em seguida será mostrado na futura propaganda:
- Sim, eu sempre disse que queria vacina.
- Não, jamais defendi a máscara.
- Talvez magia dê certo, talvez não dê.
Vacinar recupera economia? Neste caso a propaganda vai mostrar que o chefe desde criança era um pré-vacina militante:
- Ora, recuperação em V era aplicar Vacina. A média lixo é que não entende nada de economia!
Lockdown funcionou? Ora, desde o cursinho de Inglês na adolescência o líder sempre falou nisso. Down pra cá, down pra lá. Downsizing, por exemplo...
Fechar o comércio deu em nada, pois todo mundo se encovidou indo ao supermercado? Ora, o chefe sempre quis que nada fechasse, e se um dia fechou foi por ordem da OMS, do STF e exigência da média se lixando.
A bezerra de ouro está morrendo
Negar de manhã, talvezar de tarde e afirmar à noite e o dia a dia dos governantes. O que for "menos pior" vai para a propaganda eleitoral do chefe, já que todo ano é de campanha eleitoral, todo mês é de conchavos, todo dia, toda hora é só propaganda e mais propaganda nas redes.
O sonho do ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, era aproveitar a bagunça institucional para passar a boiada da quebra de regras.
Mas quebrar regras, como bem se viu na Operação Lava Jato e em tuítes desastrados, pode até dar certo por algum tempo, rendendo vitórias eleitorais, altos e provisórios cargos na República, mas depois que a boiada toda passar não adianta mais chorar a morte da bezerra.
Além das gambiaras, fazer pouco da morte e chorar a morte da bezerra de ouro são ações governamentais cotidianas, mundo afora, desde a baladeira Washington DC à funkeira Boston MC.
Preferem mimimizar a dizer onde está o dinheiro que ia sobrar para tudo e agora falta para a infraestrutura urgente e um auxílio emergencial decente.
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br