O presidencialismo subiu no telhado
Alceu A. Sperança
O presidente Jair Bolsonaro é surpreendente. Ganhou com o auxílio emergencial um número de eleitores ainda maior que o magote de liberais perdidos por desilusão com o Posto Ipiranga e seus economistas-frentistas, mas decidiu enfrentar 2021 sem novo auxílio, embora a pandemia seja a mesma que o motivou.
Surpreendeu também quem o apoia ao declarar que não pode fazer nada, quando outros em seu lugar diriam que podem tudo. Surpreendeu quem o detesta ao dizer que o Brasil está quebrado, porque fica difícil chamá-lo de mentiroso depois de dizer o que eles, haters, consideram ser verdade.
Tudo somado, talvez um dia todos, amantes e odiantes, tenham que agradecer ao presidente por desdizer tudo que disse antes ao ironicamente declarar em seguida que "o Brasil está bem, está uma maravilha".
Provavelmente a grande contribuição do atual presidente para a democracia será demonstrar que o presidencialismo à brasileira subiu no telhado. A proposta de nova Constituinte, feita pelo ministro Ricardo Barros, só faz sentido se houver nela o interesse em sepultar o presidencialismo à brasileira e criar algo novo em seu lugar.
Todo poder ao Centrão
O Centrão, no poder desde o bipartidarismo, instaurado em 1966, só enfraqueceria se a nação pudesse ter plebiscitos on line, mas ainda na idade da pedra da Net, boquirrotos, insultuosos, olavistas e mal lavados dominam as redes com seus fakes e hoaxes. A Justiça teria muito que arbitrar para impedir maluquices conspiratórias.
O parlamentarismo foi testado no Império e deu estabilidade ao país. Testado também na instabilidade, no pós-JK, até já costurava alguma coisa com Tancredo Neves vivo, mas foi vencido pelos presidencialistas e deu nisso daí.
No parlamentarismo estável da monarquia, basicamente, dizia-se o seguinte: é estável, sim, mas a República dos EUA é melhor porque traz prosperidade imediata. Aí veio o golpe que impôs a República e o Brasil testou vários modelos presidenciais que, um a um, foram para o telhado.
O marechal Deodoro saiu mal, atritado com o marechal Floriano. Que saiu nervoso, deixando a República quebrada nas mãos de Prudente de Moraes. O café com leite da alternância entre presidentes dos estados mais poderosos - São Paulo e Minas - despedaçou-se no tenentismo, que deu na revolução da classe média (1930).
Aí (como usamos esse advérbio, não?) o presidencialismo disfuncional da Velha República deu origem ao presidencialismo dos ditadores da Guerra Fria: Vargas a partir do Estado Novo e uma ditadura civil-militar que se fingiu democrática mas se desmascarou no AI-5, em 1968, gerando a mãe de todas as futuras crises - a década perdida de 1980.
Um arremedo de Constituinte
Vencida a ditadura, uma falsa Assembleia Nacional Constituinte - na verdade, um Congresso Constituinte sob o comando do Centrão, sempre ele - engendrou o atual presidencialismo.
É um regime de engorda, a julgar pelos amplos poderes concedidos ao presidente, feito chefe de Estado, de governo, de partido (ou seita) e podendo legislar via medidas provisórias.
Mas é também um regime que emagrece os excessos do presidente ao forçar a tramitação das leis em comissões parlamentares democráticas, muito palpite nas redes e votações nas duas casas do Congresso.
Se o presidente não tem maioria no Congresso, emagrece. Se tem, engorda. Para que nem a gordura excessiva do Executivo nem a magreza do Legislativo inchem ou desidratem demais o corpo nacional, o Ministério Público vigia todo mundo e a Justiça zela pelo cumprimento das leis.
É um sistema concebido para o Centrão sempre mandar, mas deu ao Brasil décadas de estabilidade institucional que antes só Pedro II havia conseguido.
Fórmula perfeita
Tendo a receita da vitória nas prefeituras das pequenas e médias cidades, onde domina a cena, o Centrão viabiliza desde a base o milagre da permanência duradoura no poder.
Empurra para o centro pragmático o governador ou presidente que se julga de "esquerda" e puxa para o centro liberal quem resvala para a extrema-direita. Agora, com as cláusulas de barreira, todos os partidos são obrigados a ser de centro para não perder verbas para as campanhas.
Para cumprir promessas, portanto, o presidente tem que ganhar o Centrão, ou seja, o Congresso, distribuindo cargos no Varejão. Mas caso aprove leis que por alguma alínea ou virgula destoem da Carta Magna, terá o MP denunciando e o STF derrubando.
Sem maioria no Congresso, o País trava (quebra é modo de dizer) e o presidente se sente impotente, uma rima sem solução. Então chegamos ao Brasil de 2021 e à desiludida declaração do presidente Jair Bolsonaro: país quebrado, presidente sem poder fazer nada, o Brasil maravilha engolindo seu mandato até acabar.
Se é fato que o presidencialismo à brasileira subiu de vez ao telhado, em seu lugar virá o quê? O semipresidencialismo francês ou russo? O sistema suíço, com sete presidentes tomando decisões num papo educado e gentil? Em fevereiro se saberá se baleia dá bom óleo ou se a lira será bem tocada.
Plebiscito? Dois já deram no velho presidencialismo de guerra.
Aguardam-se novas surpresas, que talvez cheguem entre os preparativos aos festejos do bicentenário da Independência e o Natal de 2022. Não será surpresa um Papai Noel já sem máscara. Surpresa seria uma democracia finalmente desCentrãolizada.
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br