Um sobrenome sugestivo num cartaz raivoso
Alceu A. Sperança
Quem conhece muita gente, ao ouvir um sobrenome isolado - Silva, digamos - sofre uma carga interrogativa de sensações. Afinal, de que Silva se trata? Cândido Mariano da Silva Rondon? Lula? Caxias? O inimigo do Pato Donald? Faustão?
Ao identificar rapidamente os prenomes mais impactantes ou memoráveis, as emoções variam entre positivas, neutras (até onde isso for possível, nestes dias rancorosos) e ainda eventualmente negativas. É muita gente para a bolha de amigos do peito.
É difícil não termos algum Silva na conta de bom amigo, sócio ou vizinho. Igual medida vale para muitos Souza, Martins, Santos, Pereira, Costa, Oliveira, Rodrigues, Almeida, dos quais podemos facilmente ser parentes, clientes ou até ter levado um olho roxo numa briga de escola.
Num dos vários messengers que infernizam a vida, mas ajudam quando precisamos, aparece um cartaz de protesto, em meio a uma ruidosa manifestação de servidores públicos:
- Fora Guedes!
Do gado ao leite
O sobrenome evoca de imediato as esplêndidas canções do Clube da Esquina. Nele, o excelente multi-instrumentista e compositor Beto Guedes fez uma antológica parceria com Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Wagner Tiso e cia.
Não há como achar que o cartaz Fora Guedes possa ter algo a ver com a canção Maria Solidária, de Milton e Fernando Brant, da qual Beto Guedes tem uma versão hipnótica, aquele tipo de música que ao lembrar você passa a cantarolar o dia inteiro.
No Paraná, o sobrenome talvez comece forte com Antônio Pinto Guedes, genro do capitão-mor Pedro Taques de Almeida, donos desde 1704 das terras em que a família engordava gado para vender na Feira de Sorocaba e que mais tarde receberam os colonos holandeses de cujas mãos brotou Carambeí.
O cartaz também não poderia se referir ao juiz Frederico Mattos Guedes, que ficou só um mês em Cascavel e não atrapalhou em nada. Só pode ser outro Guedes.
No romance A ilustre Casa de Ramires, tão bom para a literatura quanto a Canção do Novo Mundo para a música, Eça de Queirós apresenta o tabelião Guedes como um rematado fofoqueiro. Mas de fofoqueiro todo mundo gosta!
Sabidíssimo tabelião
O Guedes de Queirós (com s, com s!) traz uma associação direta com Darcy Ribeiro outro sobrenome tão conhecido de todos. Na obra-prima que dedicou ao povo brasileiro, Darcy, o rei dos otimistas desta nação, lembra que um certo Guedes registrou para si mesmo, no próprio tabelionato que possuía a serviço do rei português, um fazendão que ia da Bahia até o meio do atual Estado de Minas Gerais.
Ao reservar para si mesmo terras em extensão maior que a de muitos países, a história do tabelião Antônio Guedes de Brito impressionou Ribeiro, a ponto de lhe dedicar linhas destacadas no romance Migo.
Em Migo, Guedes é um intelectual frustrado, descendente do tabelião Guedes, que ainda possui muitas terras herdadas do antepassado:
- Terras apropriadas pelo velho Guedes, sabidíssimo tabelião baiano que nos idos de seiscentos e vinte armou a maior grilagem que jamais se viu: cento e sessenta léguas de terras são-franciscanas, mil quilômetros de comprimento, uns trezentos de largura.
Bala de prata, a missão
O tabelião é de outro mundo em comparação com os Guedes que nos evocam emoções positivas, muita música, o trabalho de personalidades e famílias respeitáveis com o mesmo sobrenome.
Não veremos estes Guedes em cartazes de repúdio, mas família alguma está livre de ter os que por deslizes, pecados ou má intenção a desonram e se envolvem em situações complexas, como a da malsinada polarização que tenta obrigar as pessoas a escolher entre o mulo e o fulo.
O ministro Paulo Guedes, por exemplo, entrou no governo por cima, avalizado pela elite empresarial, escolhido pelos eleitos de 18 como o grande sábio que iria matar com uma definitiva bala de prata o déficit nacional, a miséria milenar e o atraso multissecular.
Seu destino seria, como expoente redentor da famosa Escola de Chicago, resolver os problemas da economia e pôr o Brasil no topo das nações emergentes, rumo à OCDE, o clube dos países ricos. O céu deixaria de ser o limite.
Socialismo nordestino x capitalismo de Chicago
Agora cheio de pontas soltas, pela bola sete, já não consegue se entender com o Parlamento, anda às turras com a Justiça e se atrita com os principais ministros, especialmente os militares do Plano Pró-Brasil e da estrela que sobe - Rogério Marinho, sobrenome diminutivo mas forte como Rocha, outro sobrenome tão conhecido.
Tão forte que ninguém mais lembra que Marinho tem formação política socialista, mesmo sendo aquele socialismo meio de santaria e mandacarus do velho Nordeste. E olha Marinho aí, atritado com o ultracapitalista Guedes! Terá o cartaz raivoso uma inspiração marinhista?
Sem escolher entre Paulo Guedes ou Rogério Marinho, opção impossível, já que não concorrem pelo voto popular ao posto de melhor e mais ficável ministro da República, fica soando na vizinhança uma cantarola evocada pelo Sal da Terra, de Beto:
- Falo nesse chão, da nossa casa. Bem que tá na hora de arrumar... (Foto: AGBR)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br