Negar ou crer? Parece fácil escolher
Alceu A. Sperança
Acreditar em divindades, mitos ou líderes cabe ao juízo de cada um, como também não crer em nada. Até esse direito vencer em definitivo no Brasil, com emenda de Jorge Amado na Constituinte de 1946, houve muito massacre ligado ou à repressão ou por inspiração de crenças.
Parece incrível, mas há pouco, em pleno terceiro milênio, uma suposta santa deu em tremendo bafafá. O episódio começou quando, em vários eventos do Sínodo da Amazônia, em Roma, uma curiosa estátua despertou a atenção dos participantes.
Alguns bravos cultores da fé se incomodaram com a imagem de mulher grávida e nua que representava a Mãe Terra, simbolizando a vida. Sabe-se lá como, os incomodados consideraram que era a Virgem Maria e não admitiam que ela fosse representada moreninha e índia.
A imagem foi posta nos Jardins do Vaticano sob a ressalva da autoridade eclesiástica de que não era a Virgem Maria. Como também Maria nunca foi sequer o mais belo e colorido santinho de mulher loira, com ar gentil e halo de luz na cabeça.
O prefeito da Comunicação do Vaticano, Paolo Ruffini, disse que era só uma estátua representando a vida. Não adiantou: bandidos antivida roubaram a imagem e a jogaram no Rio Tibre.
Paraíso na Terra? Inadmissível!
Os intolerantes não se contentam com uma simples e óbvia explicação: preferem censurar (cancelar, como já se fala) e destruir o que desperta seus rancores. O episódio de Roma, absurdo e ridículo, entra na conta da pandemia de desumanidade que se espalha ainda mais fortemente que a Covid.
Mas quando, no passado, as coisas foram melhores? A intolerância mata, como se viu na Serra do Rodeador, agreste pernambucano, onde Silvestre dos Santos anunciou um reino de paz e justiça aqui na Terra, segundo a crença sebastianista.
Impossível! Lugar de paz e justiça aqui na Terra? Nem pensar! Isso é coisa lá do céu. Deixa assim mesmo: aqui é lugar de sofrer e ser oprimido.
Assim, em certa madrugada de outubro de 1820, o governador Rego Barreto mandou expulsar os crentes de seu paraíso. Quase mil soldados foram, massacraram e saquearam a comunidade.
Julgados depois de mortos, a Justiça considerou que a crença em milagres e magia é fruto da ignorância, mas não é crime passível de pena de morte sumária.
Volta à cena do crime
Todo esse horror não bastou. Em maio de 1838 a polícia foi mandada contra a comunidade mística de Serra Talhada, sob a acusação de que o ?rei"da seita matava crianças. O ataque resultou em 29 mortes.
O bispo recebeu o relato de um padre, por sua vez baseado no relato do comandante do ataque: o rei, com o nome de Santidade e coroado com cipó japiranga, era casado com sete mulheres. Teria assassinado 19 crianças e 19 adultos que não beijaram seus pés.
Ninguém apresentou os corpos dos mortos pelo rei, não se soube seus nomes ou onde foram enterrados. Os acusados nunca foram ouvidos porque massacrados não dão versões.
Por uma ótica atualizada, o fanatismo religioso pode servir a criminosos como impulso para cometer crimes, mas só quem comete deve pagar por eles, como no caso da pastora Flordelis e filhos.
Não se castiga quem por ingenuidade ou burrice cai na conversa mole do rei-pregador. Logo, não cabe à polícia chegar a uma comunidade, fazer julgamento sumário e massacrar.
Difícil parar de crer
Mas estas são nossas crenças atuais. Podemos mudá-las no futuro, na base do oh tempora, oh, mores? É possível que sim, a valer um paradoxo descoberto por físicos da Universidade Griffith (Austrália) ao estudar a mecânica quântica.
Eles afirmam que entre três crenças que temos, precisaremos abrir mão de pelo menos uma delas porque, juntas, elas não se sustentam. É o que garante Eric Cavalcanti, membro da equipe que descobriu o paradoxo.
Para ele, de três crenças definidas como razoáveis e amplamente aceitas, uma está errada, mas abandonar qualquer uma delas tem consequências de longo alcance para nossa compreensão do mundo. Que sinuca! Alguém jogará os cientistas no Rio Murray?
Digamos que uma das três crenças seja a certeza de que o mundo será destruído por uma catástrofe climática e nesse caso o jeito é ir poupando para comprar uma passagem numa dessas naves que periodicamente zarpam rumo a Marte.
Reserve aqui sua morada celeste
O planeta vermelho poderá ser vendido por uma imobiliária conceituada com uma propaganda de preferência aqui nesta página, que deu a sugestão:
- Marte, a Casa do Senhor onde há muitas moradas!
Esta crença se escora nas informações de que três missões recentes saíram rumo a Marte e muitas outras viagens já são programadas para breve.
Crença nutrida por conspiradores gringos é que se os EUA comprarem a Groelândia, fecharem as indústrias chinesas, proibirem a vacina russa e ocuparem a Amazônia o gelo vai parar de derreter, a economia vai se recuperar, a Covid vai sumir e a floresta parar de queimar. O paraíso na Terra, como queria Silvestre em 1820.
Uma terceira crença, a pessimista, é imaginar que compramos com as economias da vida uma passagem na grande nave que nos levará a Marte. Mas aí, um minuto antes da hecatombe final, bem na hora de partir, a nave para Marte de repente congela ou derrete num incêndio, tragédia causada por seitas malucas que amam a Terra e querem morrer com ela, como o capitão na hora do naufrágio.
Qual dessas crenças está certa? Escolha seu sonho, poetava a gentil Cecília Meireles. Só muito cuidado com certas crenças!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br