Três grandes medos e medinhos menores
Alceu A. Sperança
Cascavel, 31 de dezembro de 2021.
- Menos rancor, mais humor!
Aos gritos, meu pai, Abraxas Fechaspas, o sábio entre aspas que vende conselhos, encontrou o remédio para o Vírus da Discórdia, um demônio invisível que do nada faz as pessoas se odiarem mutuamente a partir de qualquer coisa irrelevante.
Como os assuntos relevantes vão para a Justiça resolver, os irrelevantes ficam restritos a ofensas trocadas eletronicamente, seguidas de incômodos estomacais e perturbações mentais que enfraquecem o corpo, levam à imunidade baixa e fazem a festa dos vírus descontrolados que vicejam abaixo da camada de ozônio.
O grito de papai, diz ele, é um kiai. Aquele ruído forte, repentino e assustador que parte da garganta - ou do estômago - do guerreiro para concentrar energias e atacar.
Sem gritos, para não perturbar a vizinhança, decidi seguir o conselho de meu pai e eliminei o rancor do meu coração. Senti naquele mesmo instante um tremor repentino e uma luz me iluminou completamente.
Em forma de cogumelo, acompanhada por explosões, a luz me fez esquecer o rancor estúpido que me inimizava com as pessoas, mas me encheu de medo.
De onde vem esse pavor?
Quando terminar de escrever vou sair daqui debaixo desta mesa da biblioteca para ver se o mundo não acabou. Já não sinto mais rancor, ódio, essas coisas desumanas, mas o desafio agora é lidar com o medo.
Minha madrinha, a engenheira de transportes Linda Closky, desapareceu grávida de casa e não deu mais notícias. A polícia suspeita que meu pai tenha algo a ver com o desaparecimento dela e do marido.
Certo dia, a madrinha Linda me disse que há três tipos de medo.
Um surge da ignorância, outro da irracionalidade e o terceiro do instinto de sobrevivência. Pobre tia Linda! Na tentativa de me acalmar, esqueceu que qualquer coisa pode dar medo até em escolados e escolarizados.
Se ela soubesse que há panfóbicos do meu tipo, os que têm medo de tudo, não teria uma compreensão assim tão limitada do que é viver em pânico!
Por ora, estou garantido aqui sob a mesa, mas enquanto o medo não passa, começo a me perguntar o quê, além dessa luz repentina seguida de explosões, pode me causar receio. Quais, afinal, são os meus grandes medos?
Matarão 50 milhões?
Sempre tive medo da superpopulação. Não porque as pessoas me desagradem, porque para gente como eu, que gosta de dinheiro, mais pessoas são mais gente para fazer dinheiro e mais clientes para os negócios.
O problema é que pensar em superpopulação produz em malucos perturbados a ideia de que podem matar gente à vontade, disseminando doenças, deixando de combatê-las, causando guerras, atirando a esmo e aceitando que seres humanos passem fome.
É assustadora a noção de que o mundo fica melhor com menos gente para trabalhar, quando a ciência prova que a riqueza não vem das coisas, mas do trabalho. Reinventando Descartes, cogito ergo sum quer dizer: com dígitos levanto soma.
Não há risco de superpopulação, o que faz do genocídio o maior crime. Com tanta matança no Brasil, e por outras causas além de trânsito, doenças, bala ou vício, até o fim deste século o Brasil vai perder cerca de 50 milhões de pessoas.
Há países europeus que terão a população reduzida à metade, de acordo com pesquisadores da Universidade de Washington (The Lancet, 14/7/20). Não se justifica, portanto, espalhar vírus, causar guerras e atirar em gente nas ruas, escolas, teatros e estádios.
Meu segundo medo é que os agrotóxicos matem e enlouqueçam a todos. Sempre temi aquela melancia que vovô roubava na beira das estradas de sítio.
E se estivesse envenenada para matar ladrões de melancia? Nunca aceitei uma só fatia que vovô me oferecia. Eu recusava e ele saboreava com gosto. Um dia vovô morreu, daquele jeito que morrem os avós.
Mesa envenenada
Meu medo só vai acabar quando não houver mais a necessidade de usar agrotóxicos, o que já parece próximo. Experiências combinadas das universidades East Anglia (Reino Unido) e Dusseldorf (Alemanha) com a optogenética projetam que luzes próprias aumentarão a imunidade das plantas e as farão mais produtivas.
Meu terceiro medo é o comunismo chegar nos Estados Unidos e decretar o fim do dinheiro. Mas aqui, enquanto o governo distribuir auxílios, vales e complementações de renda, o dinheiro nunca vai acabar.
Mesmo que cartões invisíveis, tatuados a laser nas mãos dos correntistas, tornem as transações em espécie obsoletas, guardar debaixo do colchão algumas notas de 200 mangos será a melhor forma de resistir ao comunismo antidinheirista.
Até já falam em notas de quinhentão. Aí, em sinal de desafio, é só sair na rua exibindo a nota aos motoboys e dizer:
- Melhor que você, tenho um monte destas!
Parece que a luz assustadora lá de fora se apagou. O jeito é sair para ajudar os bombeiros e os paramédicos, porque mais um imbecil tentou, em grande escala, produzir uma grande matança para evitar a superpopulação.
Bando de amalucados pelos agrotóxicos não faltam neste mundo cheio de ameaças e medos. Bem faz meu pai em gritar pelas ruas, nu e de máscara:
- Menos rancor, mais humor!
O ano acabou, leitor do futuro. Por isso lhe desejo muito dinheiro no bolso e saúde pra dar e vender.
Assinado: Juno Abraxas
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br