A Terra não é plana. Nem é uma bola
Alceu A. Sperança
Cascavel, 15 de agosto de 2036
A primeira lei do novo mundo, aprendida com os horrores do passado, é Não Ferir. A segunda é a obrigação de frequentar uma biblioteca, ler um livro e escrever uma página de próprio punho, com lápis e papel.
Escrever manualmente dói. Muitos não suportam, mas é um sacrifício necessário, como foi usar máscara no passado.
Escrevo agora, com câimbras nos dedos, supondo que ninguém vai ler estas palavras no futuro nem terá interesse em acessá-las desde o passado com meu Timômetro, que ficou em 2021 com nosso compadre Abraxas Fechaspas.
Fico pasma de pensar no que aconteceu com ele. No século XX, rapaz sensível, inteligente e solidário, amava as árvores, a música, pregava a paz e vivia cercado de amigos. Mas em 2020 destruía floreiras da Prefeitura e arranjava um inimigo por minuto, fazendo comentários impertinentes nas redes sociais.
Canários canalhas
Vejo-o antes, hippie, ouvindo Pink Floyd, dizendo que a Era de Aquário viria e no terceiro milênio a paz seria total. Mas algo terrível aconteceu.
Depois de acreditar nos discursos de quatro presidentes seguidos, frustrando-se com todos eles, Abraxas tornou-se amargo e descrente. Pôs a culpa de todas as desgraças no povo, desejou a volta ao passado - impossível, dizem todas as leis científicas - e passou a procurar encrencas, propondo duelos armados.
Seu pior hábito, nessa fase de rancor, era zanzar nas redes sociais e comentar ofensivamente qualquer postagem. Se alguém postasse cenas de alegria ou canários e uirapurus cantando, ele os chamava de canalhas.
O compadre, que ficou no passado, em 2021, tira proveito da máquina que lá deixei, grávida e com pressa de fugir ao ataque de uma quadrilha de calvos mascarados e agressivos. Depois vim a saber que meu marido fugia da polícia por ter espancado o compadre Abraxas.
Ignaros e olavistas
Quando estávamos naquele tempo havia muita balbúrdia. Os globalistas diziam que a Terra é redonda e os terraplanistas juravam que ela é chata. Ora, todos estavam certos! É um globo e era chata.
Já quase sem amigos, Abraxas Fechaspas perdeu os poucos que ainda restavam ao agredir nas redes sociais tanto gente adepta de que a Terra é redonda quanto de que é plana. Chamava a todos de ignaros e olavistas. Gargalhava toda vez que os agredidos respondiam com insultos semelhantes ou com a ordem raivosa do monossílabo.
Abraxas gritava nas lives: canalhas, fascistas, comunistas, petralhas, humanofóbicos, essas coisas que as pessoas diziam quando queriam briga. Hoje, ninguém briga mais: ao nascer recebem uma vacina apassivadora, parceria entre China e Oxford.
Preste atenção a Picasso
Em 2021, o compadre Abraxas se arrependeu do que fez quando comentava asneiras nos perfis de amigos e desconhecidos. Hoje prega menos rancor e mais humor, mas não se arrependeu de achincalhar globalistas e terraplanistas.
Se a Terra não é redonda nem plana, seria o quê, afinal? Deixe ajustar aqui o Timômetro para focar o compadre. Vejo-o doutrinando um bando de convertidos em 17 de outubro de 2021:
- Vivem dizendo que a verdade libertará, mas continuam escravos do erro. Ora, a Terra não é uma bola nem é plana. Pense num cubo, desses usados em cassino. Quem conhece a filosofia de Platão sabe disso. Picasso entendeu o recado, em sua fase cubista. Cube-se você também!
- Quem quiser entender mais sobre a sagrada verdade segundo a qual a Terra é um cubo, ore ao deus que a tudo responde e pergunte pelo professor Douglas Jerolmack. Ele vos dirá!
Platão estava certo
Jerolmack não é mais uma das malandragens de Abraxas, que se intitula"sábio"e vende conselhos, alegando que bons conselhos são vendidos e daí vem o sucesso e a riqueza dos consultores financeiros.
Vejo aqui a carinha de moleque do professor. Ele diz que Platão explicava o Universo a partir da geometria e associava seus sólidos a elementos da natureza e a terra é o cubo.
As provas de que o planeta é redondo sepultaram a noção platônica da terra ser cubo sob toneladas de novos conhecimentos, não mais contestados até a teoria da Terra Plana emergir misturada com ataques fascistas ao globalismo.
Douglas Jerolmack e parceiros da Universidade da Pensilvânia (EUA) acharam na tese do matemático Gábor Domokos, da Universidade de Tecnologia e Economia de Budapeste (Hungria), a ideia platônica de que as rochas se fragmentam em formas cúbicas.
?Nas rochas, ou terra, existe mais do que uma linhagem conceitual de volta a Platão. Acontece que a concepção de Platão sobre o elemento terra sendo composta de cubos é, literalmente, o modelo estatístico médio para a terra real?, diz Jerolmack com aquela cara deslavada.
Plano, redondo ou cúbico, meu compadre Abraxas e quem mais me honrar com sua leitura, que seja uma Terra feliz, é só o que importa!
Com carinho, sua Linda Closky.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br