Ditadores merecem estátuas?
Alceu A. Sperança
Curitiba, 11 de agosto de 2080.
O que mais se pode trazer ao futuro, meus queridos antepassados, além do respeito por uma família maravilhosa? Muito orgulho do papai Jambo Cipriano, que trabalhava muito, 14 horas por dia.
No Laboratório de Estudos do Sono, dormindo no trabalho, ele me deu o melhor da vida: uma reluzente Movedora Automatix, presente de 15 anos, em 2036.
Ter um pai que trabalha dormindo e minha fantástica mãe, Linda Closky, inventora dos equipamentos que permitiram a viagem no tempo, foi o máximo. Só nunca entendi porque brigaram com o compadre Abraxas Fechaspas, um sábio que não quis abandonar seu tempo e ia ser meu padrinho.
Não esqueço: quando menino, mamãe me ensinou a amar a Mulher Maravilha, globalista da ONU, há pouco eleita Rainha do Mundo. Ela também teve a genial ideia de criar a cientética, ciência e ética, depois da grande tragédia bioquímica de 2032.
Escola sem partido
Segundo a lei cientética, só se pode ir para o futuro: o passado pode ser visitado, mas o retorno é punido com paralisia e cancelamento. Não se mexe com o passado impunemente.
O mundo ficou muito chato, por isso deixei o tempo de vocês, 2036, como vocês deixaram para trás o tempo do compadre Abraxas. Viajar pelo tempo dá alegrias, mas também sobra o resíduo das saudades.
Para matá-las, assisto a antigas propagandas de remédios inúteis, hoje punidas pelas leis da cientética. E velhas aulas. Já não há mais professores, pois como todo professor tinha partido, a escola foi abolida para sempre.
Não há mais trocas de insultos e desforços sangrentos entre trogloditas. Todos agora nascem iguais, polidos e gentis. Reconhecem erros e evitam brigas. Ao jogar bituca no chão sem querer, o infrator se ajoelha e recolhe o lixo, humildemente.
Vacina da Honestidade
Psicomentei no BrainZap que não haver mais fome, crime e corrupção nos tirou toda a emoção. Ao nascer, o cidadão é batizado com a VHE, a vacina da honestidade eterna, parceria entre Oxford e China.
Desde 2028, o conhecimento vem direto ao cérebro à simples ideia de querer aprender alguma coisa. O ex-Rei do Mundo, José Maria El Sou, criou uma lei cujo descumprimento resulta em uma severa punição: você é obrigado a ler livros em biblioteca e escrever à mão, na hora, dez linhas de interpretação do que leu.
É torturante: dói e cria calo. A punição para quem não cumprir é, primeiro, ficar burro. Em seguida, desinformado. Por fim, louco por falta de raciocínio.
A felicidade chegou para todos, mas é tão chata que precisamos psicassistir o passado para nos emocionar com angústias, carências e tragédias. O aquecimento global acabou por decreto da Rainha do Mundo e ficamos sem assunto para brigar.
Pílulas de alegria
A depressão foi vencida com as Pílulas de Alegria do Doutor Jack. Aliás, o caminho para a felicidade começou em 2030, quando a Mãe Covid empesteou de vez o mundo e para salvar a economia o ministro Jesus Guedésio criou o MotherVoucher.
Auxílio emergencial de seis mil globais (G$) por três meses, logo aumentou por pressão popular para 60 mil. Para isso, rebaixaram os altos salários dos burocratas, exploradores da fé, banqueiros, CEOs, políticos, jogadores de basquete, golfe, futebol, atores de tevinema e automobilistas.
Não existem mais automóveis. A gente agora se move pelo pensamento, mas a emoção das antigas corridas e dos esportes humanos ainda é necessária, pra gente não enlouquecer.
Não há mais guerras nem necessidades básicas desde que a Mulher Maravilha aboliu os governos e fronteiras. Pena que derrubou todas as estátuas de ditadores, os antigos comediantes que faziam discursos berrados fechando os punhos com raiva.
Estátuas merecidas
Os governantes! Como eram engraçados, promovendo o culto à própria personalidade. Hoje é tudo contra a lei: a Rainha do Mundo também proibiu ver o que eles faziam, mas ainda vejo no Timômetro os alegres biologramas dos ditadores.
Eram hilários: depois de enganar multidões com propaganda, eis que de repente caiam em desgraça, loucos e infelizes. Pena. Eles deveriam ser amados por ajudar seus povos a aprender pela dor. Derrubaram suas estátuas por quê? Nunca deveriam ser esquecidos!
Nem Abraxas Fechaspas. Ele conhecia o futuro pelo Timômetro de mamãe e vendia palpites da Mega Sena. Como o prêmio era por divisão do bolo, tantos acertavam as seis dezenas que o rateio ficou minguado, repartido entre muitos apostadores.
Aí uma seita secreta de apostadores que adoravam errar para o prêmio acumular, decidiu matar o compadre. Com a proteção de escafandros contra a ReCovid, corriam atrás dele com os movimentos travados pelo pesado equipamento.
Nu e de máscara, às gargalhadas, Fechaspas gritava seu lema: - Menos rancor, mais humor!
Tempos divertidos aqueles! Pena que não se permite mais a emoção de ser governado por um ditador ridículo. Acho que foi para se divertir que meu padrinho não quis fugir para o futuro.
Em sua época ele podia apreciar as majestosas estátuas dos déspotas, benfeitores que ensinavam seus povos pela dor. Feliz futuro para vocês, é o que deseja, de coração, seu filho FreeAsABird Cipriano.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br