Presidente espirra, país pega a gripe
Alceu A. Sperança
Cascavel, 10 de setembro de 2021
Eu, Abraxas Fechaspas, de posse de minhas faculdades universitárias, deixo escrita esta carta para ser lida no futuro. No mundo caótico em que vivemos, as pessoas não estão preparadas para revelações tão incríveis.
Se soubessem do que sei, o pavor que hoje sentem seria logo trocado por uma euforia absurda. Sabendo que existe saída para a reCovid, sairiam a festejar sem medidas, até sem máscaras, crentes de que na falta de vacina o melhor a fazer para escapar deste inferno em vida é se dopar no pancadão e viajar para o futuro.
Está cientificamente provado que só se pode ir para o futuro, mas hoje descobri que também é possível voltar ao passado.
Voltamos sempre a ele pela memória, traiçoeira enganosa que pinta o ontem de cores róseas e exagera os problemas presentes, mas também se pode visitá-lo por meio de imagens fotográficas. Ou, constato agora, por ciber-hologramas.
O segredo é que encontrei um aparelho capaz de variar a época. Os senhores do futuro vão saber por minhas cartas como aconteceu a descoberta desta máquina formidável.
De volta a Cascavel depois que me tornei um sábio, fui acompanhar a polícia para prender Jambo Cipriano, meu compadre, que com a esposa Linda Closky batizou meu filho, Juno Abraxas.
Casal desaparecido
Fui covardemente agredido por Jambo em Curitiba. O compadre brigou com terraplanistas em uma greve que durou meses, gostou da violência e foi me desaforar na gruta em que me estabeleci como sábio no ramo de vender conselhos e palpites para jogos.
Na Mega Sena de amanhã, aposte o número de namoradas que teve, de cavaleiros do Apocalipse, apóstolos (trata-se de uma aposta, não?), dois patinhos (o apostador e quem acreditar neste palpite), o mês que nasceu (11, se nasceu em dezembro para não trombar nos apóstolos) e 59 porque 69 é imoral.
Jambo me acusou de assediar a esposa Linda, algo impensável, sendo ela uma cientista da indústria de transportes. Ao contrário de agradecer pelos palpites que lhe deram a quina da Mega Sena, esmurrou minha cara e saiu correndo, entre berros.
Estranhamente, a polícia encontrou a casa deles em Cascavel abandonada. Incompreensível, considerando que Linda trabalha em home office bolando invenções de transporte. Um berrante cartaz na geladeira informava:
? Adeus. Fomos embora da vida doentia.
Um evidente bilhete suicida, concluíram os sensíveis policiais: Cipriano teria matado a mulher grávida e se suicidado por temer cair doente na reCovid?
O Timômetro da Linda
Um suicídio sem cadáveres? Para fugir da prisão por me esmurrar e ameaçar de morte é que não podia ser. Ele não mataria a Linda. Um policial piscou o olho e perguntou quem me deixou de olho roxo, mas não suspeitou mais que isso.
No porão, deparei-me com uma estranha máquina. Com uma porta circular, nela está escrito: Timômetro. Um medidor de torcidas de futebol? Improvável. Bastava perguntar ao Clóvis Grelak e ele já diria quais são as maiores.
Ou seria para disfarçar com o inglês Time o Cronos grego? É um cronômetro ou medidor do tempo, diz minha sabedoria. No teclado embutido na estrutura há indicações deslizantes de dia, mês e ano.
Mais abaixo, campos para hora, endereço, indoor/outdoor. Experimento o dia de amanhã, 11/09/2021. Local: minha gruta de sábio, em Curitiba. Vejo as imagens nítidas de um bando de parrudos carecas mascarados saqueando minha caverna.
Destruindo meus livros, gritam palavrões e ameaças. Melhor, então, ficar em Cascavel e arranjar uma gruta de sábio aqui mesmo. Por ora, tomo posse da abandonada casa de Jambo Cipriano para explorar o Timômetro de Linda Closky.
Reflito que depois de o presidente Jair Bolsonaro pegar a Covid-19 o Brasil não foi mais o mesmo. Decidi procurar na máquina da Linda o que aconteceu nas situações anteriores em que o presidente caiu doente.
Faltou a Aeronáutica
Vejo que a própria República nasceu doente. Eu antes não era sábio, por isso não sabia disso: em 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro estava acamado quando uma fake news de vivandeiras o indignou e ele foi posto sobre um cavalo para proclamar o fim do Império. Fácil, porque o imperador também estava doente.
Vejo grupos de militares brigando entre si e os civis tomando partido de uma ala ou de outra, numa polarização fratricida. Tiroteios, bombas, notícias falsas plantadas na imprensa, o horror está no ar.
O presidente fecha o Congresso Nacional e irrompe a Revolta da Armada. O almirante Custódio de Melo ameaça bombardear a capital federal. Por isso mudaram a capital: saiu do Rio de Janeiro para Brasília. Aeronáutica? Só viria no século XX.
Com o presidente enfermo e a crise instalada, o vice assumiu e baixou o porrete nos adeptos do presidente decaído. Como a história nunca se repete, a não ser para radicais adeptos de Hegel e Marx, em 1969 o presidente, marechal Costa e Silva, caiu doente e não deixaram o vice assumir.
Na época não davam muita trela para essa coisa de Constituição. A história não se repetiu em 1985, quando o moribundo Tancredo Neves foi substituído pelo vice José Sarney. Ah, se a história se repetisse! Teríamos ficado livres de Sarney!
Até a próxima carta com novidades, filhos do futuro! Com sabedoria, garanto seu palpite certeiro ou seu dinheiro de volta. Menos horror, mais humor!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br