A nova roupa da rainha e o soco negado
Alceu A. Sperança
Cascavel, 17 de agosto de 2036
Filho, que alegria receber sua psicocarta de 2085. A mensagem dá uns pulinhos entrecortados na minha cabeça porque essas tecnologias do futuro ainda são novidade por aqui.
Difícil se acostumar com ligações diretas no cérebro, único lugar ainda protegido depois que o governador proibiu encostar a mão em qualquer coisa para não pegar a reCovid, da qual nem a cerveja em gel protege.
Estamos de volta a Cascavel. Aliás, uma fuga para o interior, porque na semana que vem haverá em Curitiba uma quarenterna (quarentena permanente) e a gente já não suporta mais ficar preso o dia inteiro em apartamento.
Já temos o sistema de teletransporte individual em Cascavel, mas a Certrains (Antiga Cettrans) ainda não cumpriu a promessa eleitoral do prefeito Paregar T. T. Barroso de instalar um ponto de teletransporte em cada lar em dia com o IPTUdo em dia.
Ir até a esquina para um telembarque ao sítio na Lua é muito cansativo. Com a superpopulação, você tem que nadar de braçada para fazer uma corridinha, o Cooper aconselhado pelo Programa Mova-se ou Caia Morto.
Você, aí em 2085, basta pensar e já está no lugar pensado. Bem bolada essa tecnologia! Vai acabar com a indústria automobilística, mas os desempregados ganharão auxílio emergencial por cinco meses, sem poder sacar, apenas pagar os boletos das compras de cerveja em gel. Morrerão de ressaca, mas em paz.
Galocha AntiCovid
Você quer saber a verdade sobre a minha briga com o compadre Abraxas Fechaspas e é com relutância que passo a narrar a sucessão de acontecimentos desagradáveis que levaram sua mãe e eu a romper com o safado.
Em 2021, quando descobriram a pior mutação de um velho vírus, Fechaspas smartfonou para sua mãe. Disse que inventou uma revolucionária galocha antiCovid e nossa família seria honrada pelo privilégio de ser a primeira a recebê-la.
Na época, eu estava em Curitiba participando de uma greve estadual que durou semanas. Sua mãe smartfonou perguntando o que eu achava da ideia que ela teve: comprar a galocha antiCovid para nosso uso, como proteção máxima contra a pandemia.
Uau, eu disse, vamos comprar até uma galochinha para nosso futuro filho, que veio a ser você, piá. Eu suportando insultos e bombas na greve, lá foi sua mãe ao apê do compadre, na Minas Gerais.
Servindo uísque, o compadre disse que ia se mudar no dia seguinte para Curitiba, para lá comandar uma rede secreta de robôs disparadores de zaps fakes.
O terceiro uísque
Depois de se vangloriar de passar o dia ofendendo desempregados famintos numa rede social - vagabundos sem ter o que fazer ficam só no celular postando besteiras, disse -, ordenou à sua mãe que ela tirasse a roupa. E eu levando cusparadas de haters e reaças na greve em Curita. Ah, se eu estivesse em Cascavel!
Fechaspas disse, depois do terceiro uísque, que a galocha antiCovid cobria todo o corpo e era invisível. Por toque deslizante lateral, uma abertura seria ziperada na boca para comer, beber e logo fechar. Tinha filtros no nariz e a mesma abertura da boca sob as roupas íntimas, para as necessidades da vida.
- Galocha-roupa invisível, compadre?
- Do melhor tecido transparente encontrável no mercado. Aí é só você pôr a roupa normal por cima e não precisará mais usar essa máscara cafona que esconde tua beleza polaca de Miss Soja.
- Mas compadre, que ridículo! O Andersen vai te processar por plágio. Esse é o velho truque do rei nu...
- Nada disso. Este é o truque da rainha nua, minha rainha?
Soco na cara
Antes que eu voltasse da greve, o compadre enlouqueceu. Partiu ligeiro para Curitiba e virou o sábio da gruta. Ganhei a quina da Mega Sena com os palpites dele e fui à caverna do farsante para me despedir até nunca mais. Esmurrei a cara dele, voltei a Cascavel, embarquei na máquina do tempo inventada por tua mãe e pulei de 2021 para 2036, escapando da polícia e daquele passado de horrores.
Pena que não poderei mais te ver, meu filho, porque o médico, Dr. Couto, me desaconselhou de voar para o futuro. E como não se volta ao passado sem sequelas fatais, você não poderá mais voltar do futuro. Só nos resta rever as fotografias antigas de Cascavel via Túnel do Tempo.
Ah, a greve teve um ótimo resultado. O governador não cedeu, mas dei com raiva um murro na cara de um negacionista. Peguei gosto nessa mania de dar murros. Dá cadeia mas é relaxante. Na delegacia eu neguei ter dado o soco, mas não deu para negar os honorários do advogado.
Antigamente éramos assim, filho. Falsos pra mais de quilômetro e tudo dava prejuízo. Feliz futuro!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br