De volta para o futuro: o sábio da gruta que faliu
Alceu Sperança
Curitiba, 11 de setembro de 2036
Então um dia a justiça fechou o cerco. Todos os repassadores de fake news foram expurgados das redes sociais, submetidos a julgamento e condenados a pegar Covid em presídios infectos.
Abraxas Fechaspas, contumaz palpiteiro, respondão, implicante, mentiroso e mitômano, já não podia mais viver num mundo assim.
Silenciou, raspou a cabeça e se recolheu em quarenterna (quarentena sem prazo para acabar) e parou de pagar os boletos.
O aluguel também. Despejado depois de ene manobras para enrolar o senhorio, decidiu se esconder numa gruta.
A caverna ficava no morro da fazenda do único amigo que não rompeu com Fechaspas nos anos doentios da polarização.
Comeria folhas, raízes, as frutas do pomar, os ovos da granja. Tudo cru, para não pagar pelo gás nem cortar lenha. Roupas mendigadas nos sítios vizinhos e banhos no açude, de onde também viriam peixes para o sushi. E uma placa na entrada:
- Sábio da gruta que faliu. Conselhos lacradores. Só aqui. Saldo de estoque.
Fórmula infalível
Quem não precisa de um conselho sábio? Como costuma acontecer com todo negócio, os primeiros clientes são sempre os amigos e parentes. Um compadre puxou a fila. Queria um palpite para a Mega Sena do dia 17 de julho de 2021.
Aprendendo com políticos e falsos religiosos que mentir sobre o futuro é fácil, ensinou ao compadre a fórmula para acertar infalivelmente na loteria:
- Sabe os doze dígitos do impostômetro? Olhe para ele, sinta seu perfume e troque por seis dezenas. Primeira, quantas mulheres ou homens já pegou. Não vale mentir que é mais de 60! Depois, substitua os demais dígitos pelas dezenas seguintes: 10, porque é um jogo de dezenas e seria uma desfeita não incluir logo ela. Aí o 19 da Covid, 07 das pragas do Egito e 33 porque parecem duas aves voando, ou seja, o dinheiro que teus credores vão ver voar enquanto você aposta em jogatina. E por fim 59.
- Por que 59, compa?
- Porque 69 é proibido, tchê!
Muito juízo, menino!
Filho, tua mãe e eu conseguimos escapar de 2021 na máquina do tempo que construímos com sucatas tiradas na marra dos coletores compulsivos da cidade.
Você é fruto do medo. Foi concebido quando as pessoas ainda podiam se beijar, pra você ver quanto anti-higiênicos eram aqueles tempos. Até amar com abraços era permitido pelos prefeitos, acredita?
O horror estava no ar, o rancor minava a imunidade, o ódio era um esporte coletivo. Tua mãe passou a gravidez construindo a máquina para fugir. Você estava para nascer, em 7 de setembro de 2021, quando o Alerta dava a notícia de que tresloucados ameaçavam jogar bombas em hospitais e escolas.
Mesmo morrendo de medo do que poderia dar no futuro, entramos na máquina e conseguimos fugir para sobreviver às duas pandemias daquela época - a Covid-19 e a saliva morfética dos gritalhões malcriados no trânsito.
E aqui estamos, piá, em 2036, como se ano fosse um lugar e não uma época, sem precisar de máscaras de micareta, vacinados contra a peste coroada, chulé e bafo de onça.
Só na quina, compadre?
O que aconteceu com o compadre Abraxas, filho, eu não sei. Só que ele saía nu pela rua, só de máscara, gritando:
- Menos rancor, mais humor!
Naquela época, não acertei a Sena por uma dezena e fui reclamar que ganhei só a quina. Aí ele disse que eu menti o número de mulheres que peguei, mas não foi essa a dezena que eu errei.
Bem, pelo menos a quina deu para pagar o motor da máquina do tempo, montado pelo Deoclides Carpenedo.
Até a próxima carta, filho! Mande-nos notícias de 2080, já que de presente dos 15 anos te demos uma Movedora Automatix do ano e você sumiu no tempo dizendo que 2036 é um ano morno e sem emoções.
Você gostaria de 2020, onde ficou o compadre Fechaspas, piá. A gente arriscava a vida toda vez que saía de casa. Mas não se volta ao passado. Só se pode seguir rumo ao futuro.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br