O bichinho do Rã-Rã e o golpe dos Três Boderes
Alceu A. Sperança
Dedicado aos Dantes: Mendonça e Alighieri
Sara Winter era feminista e vivia solta. Virou nazista e se arriscou a passar o inverno presa. Também acusado por mudar de lado, Eric Arthur Blair, o escritor mais conhecido pelo nome fake (vulgo pseudônimo) de George Orwell foi um guerrilheiro ultraesquerdista de coração anarquista que virou ícone dos liberais e da direita.
Como o criador do Big Brother e autor da lacradora fábula Revolução dos Bichos saiu da luta armada revolucionária para virar a coisa estranha que dizem dele, hoje? Até de dedo-duro já foi chamado, bem antes de Paulo Coelho.
Blair/Orwell lutava na Guerra Civil Espanhola pela força antifascista quando foi baleado no pescoço e ficou sem voz. Ele aderiu aos inimigos para se curar e se sustentar? O que se sabe é que driblou as regras do jogo sem o nome de batismo.
Mantivesse a causa e o nome, estaria morto? Trocando ou não de lado, mesmo sendo só um bom jornalista e não um refinado literato, chegou à glória. Estando nos dois lados, soube como ambos funcionam. Foi para denunciar os excessos e as fraquezas dos dois? Apostas abertas...
Passará 2024?
Blair/Orwell foi policial para entender como funcionava a repressão. Ficou preso para saber o que os prisioneiros sofrem. Mendigo, para saber como vivem os sem-nada. Doente, sentiu como tratam os desvalidos. Lavou pratos, foi encanador, espionou, investigou, anotou tudo sobre todos.
Teve sucesso, à custa de perder o próprio nome, mas logo Big Brother virou um monte de irmãozinhos nacionais que disfarçaram bem 1984 com a redemocratização. Viraram 94, rasparam 04, arrastaram-se em 14, passarão de 24?...
Cair em leito de hospital é coisa que neste momento acontece com muitos de nós, amigos e familiares e provavelmente o bichinho do Rã-Rã também atacou Blair quando esteve hospitalizado depois de ferido em combate.
Blair/Orwell nunca chegou a escrever uma Revolução dos Bichos II, mas saiba que o minúsculo rei Rã-Rã deu um ultimato em gritado coaxar nas redes ranais: "Basta! Se todos os animais da floresta não me adorarem na beira da lagoa, sofrerão uma doença cuja cura não dependerá do que pensam, têm ou podem".
A Revolução dos Bichos II
Rã-Rã ameaçou jogar no ambiente um bichinho invisível aos olhos que afetaria todos os descrentes. No começo, alguns riram e muitos não deram a mínima. Só que bichos sempre morrem, e à medida que morriam os rumores começaram:
- Foi o bichinho do Rã-Rã!
Depois veio o medo geral e os hospitais de campanha. Quando 70% dos bichos renderam homenagem ao poderoso rei Rã-Rã, ele nomeou um Ministério de bichos fortes, capazes de exercer coerção sobre os mais fracos.
Para controlar a todos, nomeou três bodes para as funções de primeiro-ministro da Fauna (Executivo), presidente do Congresso Animal (Legislativo) e da Justiça Quase Humana (Judiciário). Os Três Boderes funcionaram por algum tempo, enquanto esperavam o pico do bichinho do Rã-Rã passar.
Só que demorava demais, não passava e a grita começou. Primeiro, tímidos piados. Logo, cães ganiam, gatos miavam, corvos crocitavam. Ao se elevar o mais ruidoso dos urros, os Três Boderes se viram cercados e eis que o próprio rei morreu.
Sair da lagoa infecta
No pós-crise, os áulicos de Rã-Rã alegam que morreu de felicidade por enganar toda a floresta. Os inimigos, que sucumbiu ao próprio bicho que criou. Talvez os dois lados dessa polarização (fake x bichinho) tenham a mesma razão, mas vão morrer do mesmo jeito, apesar dos Três Boderes.
Aceitar o medo que dá poder aos reis batráquios é ofender a vida. Blair, mesmo oculto por um pseudônimo, nunca deixou de escrever pensando que a humanidade vencerá. Para o bem geral e a felicidade de todos, essa é a tarefa que sobra, sem outra ferramenta eficaz que não seja o método científico: estudar, pesquisar, eliminar erros e testar acertos.
Não se pode levá-la adiante com caneladas, ofensas ou paz de cemitérios. Acima das tolas ideologias, a fake x o bichinho do Rã-Rã, talvez o próprio rei tenha concluído que os Três Boderes não funcionaram como imaginou. Daí que morreu frustrado e não feliz como supunham seus áulicos.
O sábio capitalista
Melhor deixar para trás essa lagoa infecta e apertar os três poderes para que se libertem dos bodes e bugs do sistema, em articulação virtuosa que faça a sociedade evoluir como evolui a tecnologia. Podem até continuar chamando a coisa nova de capitalismo, desde que passe por desinfecção geral com humanismo em gel.
Besteira achar que Rã-Rã criou um bichinho para se matar e matar os parentes e amigos. Só haverá saúde digna da palavra com prevenção às enfermidades, o que não será possível sem renda mínima e bom ambiente (numa palavra, felicidade).
A coordenação científico-humanitária à pro-cura de uma vacina é o caminho a seguir em todas as áreas, da vacina da renda básica universal às urgentes vacinas para a doenças infraestruturais das nações pobres.
O sábio capitalista Henrique Meirelles dizia em 2018 que sobra dinheiro no mundo. Só se essa grana servir para salvar a humanidade do caos poderá haver um roteiro menos distópico para a Revolução dos Bichos III, o recomeço.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br