Um olhar atento para o endividamento no campo
Cesar da Luz
Que o agronegócio é um dos pilares da economia e que contribui de forma significativa para a balança comercial do Brasil, isso é um fato incontestável. No entanto, mesmo com a grande produtividade no campo, uma das preocupações no agro é o patamar de endividamento do produtor rural. Essa é uma questão que requer um olhar mais atento, pois a dívida do produtor rural é bilionária, e antes da pandemia da Covid-19 já estava na casa dos R$ 700 bilhões. Daqui para frente, mesmo que se anuncie uma supersafra de 250 milhões de toneladas, a fragilidade do produtor deve ser ainda maior, em que pesem os vários fatores que influenciam o mercado agropecuário, interna e externamente.
Somente para os bancos, os produtores rurais deviam, no ano passado, um total de R$ 306,8 bilhões. Junto às principais tradings agrícolas, a dívida do produtor era de R$ 153 bilhões, enquanto outros R$ 53 bilhões eram de dívidas com cooperativas, e mais R$ 100 bilhões em dívidas para bancos estrangeiros.
A soja, que continua sendo a queridinha das exportações brasileiras e poderá consolidar o Brasil como o maior produtor mundial desse grão, passando os Estados Unidos em produção, mesmo com produtividade em alta e câmbio favorável, não se tem conseguido atenuar o problema das dívidas no campo, pois muitos produtores arrastam suas dificuldades financeiras por anos, devido a revezes sofridos no passado.
De Norte a Sul do País, há uma sequência de quebras de safra. O Rio Grande do Sul, por exemplo, já registra o terceiro ano consecutivo de estiagem, que também ocorre em Santa Catarina. E no Paraná, já há decreto estadual de colapso hídrico.
Na verdade, o produtor rural está sempre à mercê das condições climáticas, e quando não é a seca, é a chuva em excesso; quando não é a geada, é o granizo, e lá se vão as boas safras, enquanto o tal seguro agrícola, por ser muito caro, está concentrado em poucos produtores.
Até o próximo mês de agosto já se fala em uma frustração de safra em torno de 50%, e isso só agravaria a situação de produtores com dívidas.
Na região Centro Oeste, onde estão os maiores produtores de grãos e gado do Brasil, a situação de endividamento não é muito diferente, sendo que o estado de Goiás sozinho responde por 11% do montante total de dívidas: R$ 77 bilhões. São R$ 42,8 bilhões junto aos bancos e R$ 35 bilhões junto a cooperativas e tradings.
Os setores do agro mais afetados são a pecuária de corte, leite, café, arroz, cana-de-açúcar, citrus, hortifruti, coco e cacau, alguns deles em condições caóticas, como é o caso da cana-de-açúcar, diante da queda do preço do petróleo, o que atingiu também o preço do etanol durante este período de quarentena.
Com o advento da chamada Lei do Agro, a Lei nº 13.986 (a antiga MP do Agro), as instituições financeiras podem, agora, expropriar o produtor via cartório, sem a necessidade de juiz. Isso acabou fragilizando ainda mais a parte devedora.
E quando se fala em política agrícola, ela tem privilegiado apenas alguns poucos conglomerados de empresas exportadoras, enquanto os pequenos e médios produtores continuam sendo subjugados pelo mercado. No caso de cooperados, eles veem os lucros das cooperativas aumentarem a cada ano, enquanto seu patrimônio e receita recuam sistematicamente.
Em se tratando de linhas especiais de crédito emergenciais do BNDES, essas continuam muito longe do alcance dos pequenos e médios produtores, que são sempre excluídos desse tipo de socorro do governo. As circulares do BNDES que estabelecem as operações conhecidas como CDDs do Agro acabam ficando só no papel, e as instituições financeiras não emitem normativas internas para dar o acesso ao crédito emergencial. O tempo passa, o produtor não consegue acessar a linha especial de crédito do BNDES e acaba sendo mais prejudicado com a perda de tempo, sem solucionar o problema dos seus financiamentos. Pelo contrário, com o tempo, a dívida só aumenta.
Quando há uma frustração de safra, o produtor pode levar até dez anos para se recuperar. Por isso, ele é amparado pela Lei de Crédito Rural, uma legislação criada em 1.965 que tem por base o Manual de Crédito Rural, na tentativa de compensar um pouco a situação e amparar a quem produz alimentos no país. Afinal, é preciso cuidar da segurança alimentar, e o produtor brasileiro, mesmo com todas as intempéries e frustrações, produz o necessário para alimentar cerca de 20% da população mundial, algo como 1,5 bilhão de pessoas.
Mas é justamente na questão da legislação que trata do crédito agropecuário no Brasil que reside uma grave situação e uma arbitrariedade berrante: os bancos desrespeitam fragrantemente a lei, ao incidirem em suas operações de crédito, juros exorbitantes e taxas de mora ilegais.
Quando o produtor não consegue pagar as prestações, os juros das renegociações não observam os índices dos contratos originais. Também, as instituições não observam a taxa de mora de 1% ao ano, e de juros no máximo de 12% ao ano, além do direito de a dívida, quando há frustração de safra, poder ser prorrogada nos encargos iniciais acordados, como dispõe o Manual de Crédito Rural. Ou seja, em dificuldades, o produtor recorre a um novo financiamento, com juros mais caros, para pagar outro, de juros mais baratos, na operação apelidada de mata-mata.
Isso sem falar que as dívidas dos produtores trazem consigo as execuções e crescem os casos de áreas adjudicadas, consolidadas ou leiloadas pelos credores. E há, ainda, a questão das hipotecas de áreas dadas como garantias nas operações, sendo que as CDRs (Cédulas de Crédito Rural) são convertidas em CCIs (Cédulas de Crédito Imobiliário). Ou seja, o problema do endividamento coloca em risco a propriedade rural e o patrimônio do produtor, que sofre também para fazer a sucessão no campo.
É exatamente por tudo isso que, ao destacarmos os esforços do agronegócio em manter a economia girando, e que o campo continua garantindo a segurança alimentar à população, evitando até o desabastecimento em tempos de pandemia como a que vivemos, é preciso que se tenha um olhar mais atento ao endividamento do produtor rural, que continua sendo alvo de arbitrariedades quando está em dificuldades para pagar seus financiamentos. Nessa hora, ele precisa de ajuda especializada, que lhe auxilie nas renegociações de dívidas e garanta-lhe um suporte para manter sua atividade e proteger seu patrimônio. O produtor não pode continuar "deixando aos seus filhos, a pampa pobre que herdou dos seus pais".
Cesar da Luz é jornalista, escritor, palestrante, bacharel em Direito, diretor do Grupo C.Agro Consultoria e assessoria empresarial e de agronegócio