Fakelândia, a nação dos malucos
Alceu A. Sperança
Grunhiu duas vezes, roncou feroz, rasgou as vestes e saiu, nu, urrando pela rua. A verdade liberta, mas a extrema imprensa só fala em crise e doença. Não pode ser verdade! Titia diz que é, vovô nega. Ela é professora, mas quem a botou na escola foi ele. Em quem acreditar, se quem dá muito palpite em geral vota errado nas eleições?
A tia manda confiar na extrema imprensa porque a verdade dói, mas é real. Para vovô, a mentira só dói quando é descoberta: aí é só silenciar que a vergonha de votar errado logo passa. Por via das dúvidas negue tudo, sussurra papai, diplomático.
Titia protesta: avestruz que enfia a cabeça na areia para ignorar os problemas deixa o corpanzil entregue aos predadores. Vovô gargalha: os predadores foram inventados pela Falha de San Andreas e pela Redy Glaga.
Então, querendo acreditar mas duvidando de todos, ele sofre o surto, grunhe e urra. Exausto de tanto berrar, desmaia e acorda surpreso em Fakelândia. Aqui tudo é mentira. Cada qual escolhe uma, acredita nela e manda o resto às favas.
O fogo purifica, a dor santifica
Fakelândia é a terra ideal de papai: sendo tudo mentira, basta escolher a que menos dói e seguir em frente. Brigue, sofra, ofenda ou ame, o sol voltará a se pôr.
A primeira notícia que lê na versão fakelandesa do jornal Falha de San Andreas é que terremotos, erupções vulcânicas e doenças são bênçãos dos céus. Vêm para eliminar os maus e salvar os escolhidos.
A Redy Glaga já diz que os bons morrem, por isso ganham horas a fio de reportagens fúnebres. Quem sobra vivo têm pecados a expiar e pendências a resolver: boletos, financiamentos, empréstimos. Para saber se é bom ou mau, diz o âncora, vá a lugares onde tragédias acontecem e se aglomere para ajudar o contágio.
Os bons provam a fé entrando em prédios que queimam ou desabam. Ficar de joelhos durante inundações para a água chegar logo ao pescoço é um simples e eficaz teste de santidade.
Bruxas não queimam
As provas de fé deram certo para as bruxas de outrora: se não queimassem no fogo, claro que eram bruxas de fato. Queimando, provavam ser mulheres honradas. Morrendo, iam direto ao Limbo para o qual iriam de qualquer forma, pois querer o céu é muita presunção e inferno não é coisa que pobres mereçam, depois da vida que levam. Só por saber que não eram bruxas já se pode dar graças a anjos e santos.
Fica pasmo ao passar diante de um imenso palácio feito de ouro. O luminoso da fachada anuncia em neon a Igreja da Adoração Convide-19-Fiéis. O lobo (nome do chefe da igreja, o contrário do "pastor"das demais religiões) dará ao novo fiel 190 dinheiros se ele convidar 19 infiéis a doar cem dinheiros cada um para o cofre da seita. Dinheiro, entenda-se, é o nome da moeda corrente fakelandesa.
Nas cerimônias, os fiéis são chicoteados pelos lobos e gritam que são pecadores. Há os que oferecem mais cem dinheiros para não ser chicoteados e merecem a glória do Novo Limbo, onde nem o falso céu nem o falso inferno atingirão os crentes.
Microanjos pulmonares
Só Fakelândia lhe transmite a incrível sensação de bem-estar que nenhuma outra nação lhe dá. Não ligue para o mau cheiro, apenas sorva esse ar miraculoso. O ar lhe parece enfumaçado? Não, homem de nenhuma fé: o ar só está repleto de microanjos que vão entrar em seus pulmões para puxar de lá o mal que existe dentro de você.
A tosse que não acaba é a ação dos anjinhos expiando impurezas. Falta de ar? É a glória! Se voltar a respirar bem você é impuro de espírito e precisará de mais algum escasso tempo para se redimir. Respire fundo e experimente a sensação refrescante de sentir a vida se esvaindo. E ao morrer, já sabe: é um santo e vai ao paraíso possível, com doze horas de cobertura fúnebre na TV.
- Ah, Fakelândia, graças a Deus finalmente te encontrei!
Ops, dizer isso é pecado aqui. Em Fakelândia é obrigatório cumprir o segundo mandamento, que em outras terras ninguém obedece. Não é permitido pronunciar o santo nome em vão. Democracia e Direitos também são palavras impronunciáveis.
Vírus é paraguaio, não funciona
As tragédias e desastres são vida para a alma, diz o lobo-mor. Quanto mais desgraças, mais próxima ela estará do Limbo salvador. Doenças são passaportes para a libertação, coiotes que dão acesso ao Nirvana.
A Igreja Convide-19-Fiéis foi inspirada no culto ao vulcão Vesúvio. Porque vulcão mata puros de coração e deixa os impuros vivos para pagar dízimos aos lobos e expiar pecados. Até ser provados no próximo terremoto, incêndio, inundação, corrupção, falta de verbas ou doença.
E o vírus? Nem é chinês: um tatu o ingeriu em mandiocal paraguaio e se aliviou na plantação de soja vizinha. Então a bênção virótica seguiu em um contêiner à China, onde inoculou militares dos EUA que espalharam a praga pelo mundo. Este bilete não é teoria da conspiração.
Despertar auriverde
Azar dos azares, culpa da crise e da peste, o surtado não conseguiu convidar 19 descrentes dispostos a contribuir com dinheiros. Pediu ao lobo-mor um jeitinho, quebrasse o galho e deixasse passar, mas foi expulso.
- Devia ter mentido: a gente acreditaria...
Desmaia em faniquito teatral e acorda já de volta ao Brasil indolentemente pacífico de todos os dias. Corre abrir o smart em busca de notícias da extrema imprensa e a primeira manchete que vê é:
- Coronavírus pode ser só ensaio de uma próxima grande pandemia, diz médico e matemático da USP.
Aí grunhiu como antes, roncou ainda mais ferozmente e voltou a sair urrando pela rua. Desta vez, sem máscara.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br