Respire na máscara, conspire e se aqueça para entrar em campo
Alceu A. Sperança
Não, Mr. Martin Luther King. Desta vez eu não tive um sonho. Foi um pesadelo. Acabaram-se os direitos e todos têm um único dever: obedecer às ordens dos robôs esquizofrênicos que controlam a rede mundial de cérebros conectados.
Vídeos, áudios, imagens, tudo pode ser manipulado e distorcido sem a menor preocupação com a verdade, que virá do latido mais grosso.
Para engrossar, o latido terá à disposição robôs aos milhares que entrarão nos celulares de milhões, crentes acríticos e iludidos que vão realimentar a desinformação. Ou contrainformação, palavrão mais denso.
Neste pesadelo, doutor King, a informação fraudada contamina até quem tem imunidade. A pandemia se alastra porque uma hipnose luminosa produz a loucura de repassar trollagens. A vítima não cai morta, a não ser de vergonha pelo risco de perder a reputação duramente construída.
Aquilo que antes era o reino bianual do marketing eleitoral, com suas guerrilhas, falácias, facécias e falações capciosas, virou o vírus do dia a dia. Mente-se como se respira e conspira.
Mulher, militar, latina...
Memes sofismáticos em pencas elevam quase 90% do que circula nas redes sociais à categoria de fake. Dos restantes 10%, muita coisa mistura fatos e boatos. E assim a verdade, espremida entre 3% e 5% vai parecer inverossímil por inexpressão estatística.
Latidos, rugidos ou malandragens sussurradas tentam ser verdade no caso da Covid-19. Um alega que o vírus é chinês, como se micróbio tivesse pátria ou parasse em alfândega. Outro, tão inútil quanto este, insinua que a culpa é das mulheres, militares, americanos, europeus e latinos. Culpados de montão!
O alvo perfeito foi achado: é mulher, militar, tem nacionalidade estadunidense, prenome holandês e sobrenome latino a senhora Maatje Benassi, reservista do Exército dos EUA, mãe de dois filhos, acusada de ser a agente que deu início à pandemia, ao levar a doença dos EUA para a China (versão oriental) e de levá-la da China para os EUA (versão gringa).
Sendo militar, obedece ordens. Alguém superior a mandou. Mas o que interessa aos conspiradores, agora, não é achar mandantes inexistentes: é acusar inimigos e desafetos de ter disseminado a pandemia.
"Prendam os suspeitos de sempre"
Fake ou real, neste pesadelo tudo é relativo, doutor King. Fake que interessa é fantasiada como verdade. Verdade que não interessa é carimbada como fake. O sujeito só acredita no que casa com a qualidade de sua cultura ou emoção.
Quando a verdade é dura de engolir, preferem acreditar no falso brilhante. Supor, imaginar ou querer um culpado é fácil. Basta usar"um dos suspeitos de sempre?, como dizia o chefe de polícia em Casablanca. Essa simples técnica da refinada investigação explica o sucesso das teorias da conspiração.
Elas, como os boletos e as prestações do carro, estão vencendo. Se até o ministro das Relações Exteriores é adepto de associações de ideias geram cons-pirações, rezapear mementiras deixa de ser relevante para gente sem reputação a zelar.
Sacrificar peões
Alegremente, o terraplanismo, o antidarwinismo e agora o aquecimento geral vão se convertendo em ações de governo.
Aquecimento geral - não confundir com aquecimento global, que são outros 500 bilhões - é quando um treinador de futebol se cansa de gritar para o time desobediente e põe todos os jogadores para se aquecer.
No xadrez, quem não sacrifica peões não ganha jogo. Governo acuado troca ministros. A falência dos governos em resolver os problemas da economia (a peste veio a calhar, pois antes dela tudo já andava mal parado) os levou ao"antissistema"de jogar fora a burocracia estável e impessoal para pôr em campo craques ególatras que abusam de embaixadinhas e dribles personalistas.
Como não fazem gols, a situação do povo só piora. Aí o treinador, alegando que não é obedecido, tenta criar mais obediência entre os demais fritando os craques que abusam de canetas, lençóis e chapeuzinhos, pondo todos os pretendentes aos cargos no aquecimento geral dos dossiês fajutos e reputações destruídas.
Quem controla teu celular?
Na primeira ocasião em que o chefe não possa, não consiga ou não queira resolver um problema, vai criar distração trocando uma peça do time. Assim ganha mais um tempo à espera que o problema se resolva sozinho, por alguém (Justiça, Parlamento, robôs) ou seja esquecido.
E, com isso, nunca antes na história etc, tantos subalternos, vices e substitutos legais conspiraram tanto para entrar no lugar dos titulares. Além do salário congelado, dr. King, o burocrata agora se sente na obrigação de não servir só ao Estado, mas de bombar no Twitter e obedecer à seita dominante.
Aquecimento global? Com todos tratando de salvar a própria pele, quem é que vai pensar em planeta, doutor? Todos tratem de ir se aquecendo, pois os frouxos em campo serão substituídos logo que o treinador precisar dizer que, tática ou estrategicamente, quem manda é ele.
E... atenção! Nova teoria da conspiração diz que os governos criaram a Covid-19 para ter como disfarçar a intenção de controlar todos os celulares. Será que governantes tão amantes da liberdade e da democracia iriam nos sacanear desse jeito, doutor? Fala sério!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br