Bem-vindo à Idade Médica!
Alceu A. Sperança
Mudar é uma alternativa que a vida sempre apresenta. As coisas mudam. Na época de Pilatos, lavar as mãos significou omissão. Como o mundo dá voltas, hoje lavar as mãos, ao contrário, é um ato de respeito para consigo mesmo e os semelhantes, uma das melhores práticas contra a pandemia da Covid-19.
Ao molhar os dedinhos com aquele estardalhaço, se já fossem tempos republicanos, Pilatos teria traído a cláusula magna da impessoalidade, princípio superior que o governante jura respeitar no exercício do poder.
Impessoalidade é lei, mas a cada entrevista coletiva, pronunciamento em cadeia de TV e lives de presidente, rei, ministros, governadores e prefeitos mais pregos egolátricos são martelados no caixão da lei.
Lavagem rápida ainda serve para veículos, não mais para as mãos. Na atualidade brasileira, a Operação Lava Jato calhou no combate à corrupção, mas a lavagem demorada das mãos a tirou da cena principal.
Holofote, vírus que mata impessoalidade
Lavando roupa suja, por obra da imprensa e de estrelas do mundo jurídico a OLJ não seguiu fielmente a regra da impessoalidade. Os césares e czares não a seguiam e hoje os presidentes-imperadores também não dão a mínima para ela.
A Lava Jato levou uma surra do vírus. Foi o danado aparecer e a operação sair do foco da mídia. Ela não parou, mas quebrou o ritmo, que vinha intenso, sob aplausos de uns e choradeiras de outros, desde 2014.
Deu-se uma briga pelos holofotes midiáticos entre a OLJ, o vírus e as estrelas que o combatem, seja com seriedade, seguindo as orientações da OMS e do Ministério da Saúde, ou da boca pra fora, cuspindo vírus sem máscaras nem cuidados.
A restrição à mobilidade dificultou as audiências das ações penais em andamento, mas a OLJ voltou bem à cena quando o STF acolheu pedido do Acre (há teorias de que nem o Acre nem o vírus existem) e autorizou aplicar recursos recuperados pela operação no combate à doença.
Logo perdeu o palco: a vitória sobre os imprudentes do ministro da Saúde, Henrique Mandetta, seria sinal da emergência da Idade Médica, uma conspiração em que os doutores regulariam nossa vida desde antes de nascer, durante a vida e depois da morte: destino dos órgãos, dos ossos e do resto.
Conspiração de branco
Na Idade Médica, por conta das emergências viróticas - corona, zica, dengue, o diabo - a Constituição seria reescrita. Uma cloroquina assassina mataria o vírus da impessoalidade na gestão pública para que não ousem as estrelas ofuscar o Rei Sol: L'état c'est moi. Os gestores da Idade Médica aposentariam o direito de ir e vir e outros direitos mais iriam sucumbir à medida que novas doenças surgissem.
Outras teorias da conspiração, peste da Net e irmã das fake news, alegam que os vírus destrutivos foram criados em laboratório na China, Marte, Moscou ou no deserto do Arizona.
Difícil crer que médicos e cientistas, às loucas gargalhadas, reúnam-se em laboratórios indetectáveis pelos governos com a intenção de liquidar a própria família e a humanidade em geral, pagos por alienígenas de olhos puxados e pele morena que trocando erres por éles rendem graças a Tupã, Confúcio ou Alá.
Mais fácil acreditar na versão de pesquisadores estadunidenses e australianos de que o vírus surgiu naturalmente em um dado bioma e ali ficaria se não fosse espalhado por criminosos traficantes de animais silvestres ameaçados de extinção.
Pokémon só dá gripezinha
Do fofinho pangolim, que as crianças conhecem pelo Pokémon Sandlash, o vírus pulou para o sistema digestivo do homem e daí ao respiratório. Era a derrota do animal social que rejeita o cotovelaço para cumprimentar, preferindo um quebra-costelas forte e amigo.
Na Idade Médica cheia de exigências se daria bem o Analista de Bagé, personagem de Luiz Fernando Veríssimo, com sua Terapia do Joelhaço.
Ela teria também o apoio gentil da Inteligência Artificial. O algoritmo da BlueDot, empresa de tecnologia para a saúde, alertou em 31 de dezembro para evitar Wuhan, na China. Mais de uma semana antes que a Organização Mundial de Saúde alertasse o mundo para a mesma coisa. A OMS soube depois ou pelo algoritmo?
Dúvidas e mentiras andam juntas. A pesquisa de mercado Ipsos relatou que 86% das pessoas admitem ter acreditado em notícias falsas de redes sociais. Duvidar é preciso, checar as informações fora das bolhas, manadas populistas e redes sociais é imprescindível.
Autoprisões, lares-enfermarias
Rasgando a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, se a Idade Médica triunfar em nome da saúde e confinarem seus dominados em autoprisões ou lares-enfermarias, talvez os cronistas do futuro digam que ela começou com a ameaça apocalíptica do Instituto Pensi, segundo a qual a partir do momento em que o Brasil confirmasse 50 casos da Covid-19, o país chegaria a mais de 30 mil casos em 21 dias.
Como em 11 de março o Brasil somava 52 casos, em 1.º de abril já seriam mais de 30 mil. Só que abril começou com o número de casos ainda abaixo de 7 mil.
As medidas tomadas pelos governadores e prefeitos funcionaram, o instituto chutou alto demais, era mesmo gripezinha ou a Idade Médica já começou? Pelo jeito, a subnotificação dos casos e das mortes ainda não contaminou a maluquice das redes. A teoria da conspiração continua brigando com a teoria da constipação.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br