O gordo e o magro: da comédia à sindemia
Alceu A. Sperança
O esperto jogo de gênios, o gigantismo dos egos em disputa, golpes e contragolpes de espionagem industrial, narrativas em choque, a idolatria do mito e uma escolha decisiva para o futuro da humanidade são os elementos que eletrizam no filme A Batalha das Correntes, de Alfonso Gomez-Rejon.
A fita se permite quase nada à ficção, entregando uma representação bem real do momento em que o capitalismo rompe os limites do passo a passo para ganhar a velocidade da luz. Thomas Edison, já conhecido de antemão pelos espectadores, começa como o dono da bola. Nikola Tesla, desprezado por ser imigrante, tenta umas embaixadinhas, mas leva um drible de Edison e cai de joelhos.
Mas aí se levanta e dá o passe para o gol final e decisivo de George Westinghouse, que antes do filme poucos conheciam bem. Fato conhecido, sem spoiler, termina com GW no papel de um Golias que sobreviveu à pedrada porque meteu Davi (Tesla) na folha de pagamento.
Faz uma vaquinha, ora!
Como naquele fim do século XIX, o mundo, novamente, está às voltas com uma batalha entre narrativas. Agora a escolha crucial não é entre correntes alternada ou contínua, mas entre mudar ou manter o sistema que enriquece demais a poucos, proletariza remediados, empobrece a classe média, miserabiliza os pobres e mata os miseráveis de Covid-19, dengue, susto, bala ou vício.
Como sair dessa engrenagem, sistema, mecanismo ou o nome que se queira dar ao pós-fim da história? Facilitada pelo imediatismo das transações, está na moda, sobretudo para fins eleitorais, esportivos e culturais, a vaquinha (crowdfunding).
Juntando um montão de ideias em voga desde que Thomas More fez as perturbadoras perguntinhas de Utopia, a ideia é somar a renda mínima necessária à sobrevivência de cada pessoa aos recursos para vencer a fome, a obesidade e os rigores do clima. Definido o valor final, convoca-se uma vacona de proporções planetárias - coisa de trilhões. Aí é apelar ao bom coração dos ricos e remediados, convencendo-os a contribuir até fechar o montante.
Socialismo? Kkkkk!
Estabelecer um valor mínimo a ser repartido entre todos seria socialismo? Ou é apenas uma comédia, truque astuto para salvar o capitalismo em xeque? Milton Friedman cravou a coluna 2.
Não há sinal de xeque-mate no sistema porque ainda restam muitos peões a sacrificar. O risco é que sem a vacona ele ficará pela bola sete, dependendo de um diálogo que abra as portas ou uma tragédia que as arrombe.
Todos seriam salvos pela tal vacona, mas apenas 0,5% poderão contribuir com valores significativos quando (ou se) a crise política, econômica e sanitária engolir algo como um bilhão de lares. Os 99,5% que não contribuiriam, limitados por excesso de dívidas ou por já não ter mais nada, seriam os únicos a ganhar com a Big Vaca.
Para os nababos egoístas, seria mais fácil e barato vaquear uma estação espacial para viver nela em condições climatizadas, servidos por gentis robôs e algoritmos escravizando os workaholics que ficarem na Terra até os últimos lugares habitáveis alagarem, torrarem ou gelarem.
O resto, gente incapaz de engendrar a própria salvação em dez mil anos de história conhecida, vire-se. Pobre só sabe fazer filho e reclamar, rezam os manuais secretos dos governantes.
Mas enquanto houver na Terra um lugar paradisíaco para onde fugir, a vacona não decola. A ideia imediata é um refúgio ainda na Terra até as encomendadas moradas no céu chegarem. Amazônia? Preferem a Nova Zelândia.
A mãe das pandemias
Como o susto está na moda e todo dia surge um novo sobressalto, esteve no Brasil dia desses o professor Boyd Swinburn, especialista em Nutrição Populacional e Saúde Global da Universidade de Auckland, que fica onde, mesmo? Nova Zelândia...
O susto dado por BS foi expor um relatório científico apontando para algo ainda menos conhecido que Westinghouse antes da briga com Edison: uma tal Sindemia Global. Sindemia, sem firulas, quer dizer desgraças que se somam até dar na pancada única de uma desgraceira geral, como a síntese de três pandemias: obesidade, desnutrição e bagunça climática tendo como elo ou cola entre elas a Covid-19.
Ou os governos do mundo e as pessoas esclarecidas se mexem para não piorar a situação ou vão todos para as cucuias com o gordo megavírus detonando um mundo magro na economia. Clima bagunçado cria vírus. Economia ruim avaria defesas imunológicas. Aí a Sindemia, como um gato, faz pulmões ronronar e o povo rugir.
Como salvar a Big Vaca?
A Sindemia engorda porque o sistema alimentar atual, além de disparar o gatilho da obesidade, aumenta a desnutrição e piora as mudanças climáticas. Alguns vilões são conhecidos: comidas avacalhadas e bebidas açucaradas se juntam ao cala-boca do governo brasileiro dado no Conselho Nacional de Segurança Alimentar, estatelado no chão ao tomar um drible da vaca das corporações.
Há chances de virar o jogo, como Tesla fez em favor de Westinghouse? Sim, mas será uma luta intensa de dez anos para não chegar ao círculo vicioso da desgraça nova somada às desgraças de antes para desgraçar tudo.
Negacionistas pró-corporações, religiosos apocalípticos, cientistas afobados e consumidores à beira de um ataque de nervos vão gastar mais essa década atacando ou defendendo mudança climática, tabaco, comida bobagenta, poluição e obesidade?
Para poupar tempo, Boyd Swinburn sugere uma vaquinha modesta, de um bilhão de dólares, grana que viria de taxar as porcarias açucaradas. Um bezerrinho perto da trilionária vacona tida como necessária para salvar a humanidade.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br