Tirar o corpo fora (ou como governar no século XXI)
Alceu A. Sperança
- Tirando o corpo fora, né, Drácula?
O cartunista Nani, para não perder a piada, desenhou o famoso vampiro retirando um cadáver do túmulo, sob a queixa do coveiro. Na guerra cultural, este simples chiste já daria uma discussão infindável repleta de insultos e kkks, porque é leviano e fora de contexto acusar o vampiro de tirar o corpo fora de um túmulo, considerando que só sugava o sangue.
Ia à luta com fúria e empalava os inimigos, mas tirar o corpo fora não era de sua índole, a julgar pela obra de Bram Stoker. Quem tirava os corpos fora das estacas eram os parentes das vítimas. Logo, parem de acusar Drácula de crimes que não cometeu...
Drácula foi temido (e copiado) como um símbolo de governança nos séculos passados, quando a política, alicerçada na ideologia reinante, era sugar pessoas e nações. Tirar o corpo fora é uma política mais atual, própria do século XXI.
Tirando Comte do contexto
Já não se empala mais gente, mas continuamos governados por gente morta, como diria Augusto Comte. E também por regimes mortos: há muitos países em que prevalecem os sugadores de energias dos povos, ditadores que sopram com o voto enquanto mordem com sócios ocultos.
As repúblicas vieram aos poucos, sem derrubar todas as cabeças coroadas, e assim a nova política de tirar o corpo fora também vai se alastrando. Políticas malucas decretadas esbarram no parlamento ou caem na Justiça, mas geram impasses. Diante deles, ou o governante tira o corpo fora, pondo a culpa em alguém, ou manda esbirros fechar parlamento e tribunal para impor a vontade do ditador. Vide El Salvador, onde o velho figurino sugador foi enquadrado pela Justiça.
Nas democracias, convocam-se repetidas eleições em busca de maioria, mas o impasse continua, as crises se esticam, o corpo tirado apodrece ao relento. Reelegem-se tiradores de corpos ou aparecem suas versões novas. E surgem mais impasses, até que venham vampiros de nova geração, munidos de robôs e algoritmos. E dê-lhe tiroteios!
Fora, sugadores!
Com a sugação, quem perdia eram os mais pobres. Com o corpo fora, a classe média também já sente a água no pescoço. Não é a doméstica que ia à Disney, Mr. Paul-sto Ipiranga: era a classe média baixa. O famoso diabo residente nos detalhes é tudo ser validado pelo voto: quem já ganhava com vampiros, ganha ainda mais com os impasses de quem tira o corpo fora.
De onde veio a diretriz que trouxe a esse ponto? Seguindo os mais espertos teóricos na arte de bolar truques enriquecedores (Escola de Chicago e similares), o Fundo Monetário Internacional recomendou às nações adotar a austeridade, a gêmea boa, e sua irmãzinha malvada, a flexibilização, cuja combinação faria a economia bombar em prosperidade e desenvolvimento.
Deu na economia em queda, estagnada ou de lentíssimo avanço. Juntada a uma desigualdade crescente, enriquece os já ricos e agrega mais alguns poucos, via tecnologia, ao time do alto.
A incapacidade de achar um rumo que poupe a classe média realimenta sugadores e glorifica tiradores, que alguns já chamam de traidores. E aí, entre a política de sugar geral dos vampiros antigos e a nova, de tirar o corpo fora, tônica dos governos na atualidade, veio a austeridade neoliberal e seu efeito colateral: a flexinsegurança, que aprofundou a angústia, a insatisfação e o medo.
Qui prodest? Quem se aproveita?
Para que não mude ou demore a mudar, tirar o corpo fora prevalece e botar a culpa em outros completa o cenário.
Um bocado de gente enriqueceu, mas para as multidões aumentou a insegurança e a incerteza. Depressão, novas doenças surgem e velhas reaparecem. O clima endoidou. O que faremos com quatro avós saudáveis não aposentados e dois filhos desempregados, com diplomas decorativos e loucos de goró e química?
A miséria, a incompetência governamental e as guerras expulsaram milhões em busca de refúgio nas nações que venceram a armadilha da renda média. Mas aí a polarização toma conta até das sociedades vencedoras, naturalizando ofensas e agressões, civilidade decadente e falta de respeito ao semelhante.
Talvez o FMI não esperasse que o resultado das gêmeas boa e má fosse esse caos à vista de todos, poucos nichos de muita riqueza e a classe média lutando nas galés, remando a nau esburacada.
Ter desejado o mundo desse jeito seria crueldade digna de vampiros ou violadores de túmulos. E assim, enquanto muitos tiram o corpo fora cobrando uma autocrítica do PT, que vai tirando o próprio corpo fora, é o FMI que faz uma severa autocrítica.
Que tal Guardalavaca, madame?
Ex-ministra francesa da Economia, Christine Lagarde, ao contrário de seus antecessores à frente do FMI, deixou de puxar as orelhas dos países pobres e decidiu se empenhar no combate à pobreza e à desigualdade. Nem foi vaiada na Argentina, recentemente. Sob aplausos, criticou EUA, China e União Europeia pela guerra comercial.
Sobre os efeitos desastrosos das maninhas austeridade e flexibilização, ela fez a dolorida autocrítica:
- Subestimamos a capacidade das sociedades de absorver tratamentos duros.
O infalível FMI, sem tirar o corpo fora, confessando que errou!
Antigamente, quando alguém criticava o FMI era xingado e mandado para Cuba. A crítica, agora, vem da própria chefa do Fundão. Tenha uma boa estada em Varadero ou Guardalavaca, madame Christine! Só cuidado com os tornados e furacões.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br