É isto um homem?
Rejane Pires Martins
É isto um homem? Sempre me indaguei sobre J.J Duran. Como toda lenda, você demora chegar à pessoa. E demora, muitas vezes, por ignorância, por descuido, por pré-julgamentos. E, para chegar a Duran, primeiro tive que me deter nesta cadeira vazia. Nela, cabe tudo de Duran. Cabe a solidão. A fé. A memória. A partida e a chegada.
Observando a cadeira, descobri, então, que Duran não se tratava de um homem. Mas de uma alma esperançosa. De uma alma que converteu dor em um mistério. De uma alma que resistiu para acolher. De uma alma que aprendeu amar a todos, com sotaque ou sem sotaque. De alma que ainda luta pela igualdade e pela paz.
Quem o conhece sabe o que estou falando. Quem não o conhece, vamos lá. Jornalista, ex-deputado federal na Argentina, perseguido político, preso, torturado e exilado, Duran chegou em Cascavel em 1980, fugindo da sangrenta ditadura de seu país.
Aqui, fez o que poucos fariam. Ao lado de seu grande amor, Ana Maria, tão utópica quanto ele, adotou 17 filhos. Num dia só, chegou a adotar quatro. Duran é assim. Não lhe perguntem o porquê de tanta renúncia? Não há resposta.
Quando houver uma resposta, tudo isso perderá o encanto. Olhando no seu semblante, nem precisa de resposta mesmo. Aos 92 anos, é dono do seu tempo. Mais do que isso, é dono de sua liberdade.
Mas, é claro, tudo tem seu preço.
Nascido em Buenos Aires, Duran viveu uma vida tranquila até os 11. Com a morte do pai, um editorialista do jornal "La Nación", descortinou-se para outra realidade. Teve de assumir a casa, a mãe e o irmão caçula, de apenas cinco anos.
Como bolsista, estudou num melhores colégios de Buenos Aires. Ali, enfrentou diariamente o preconceito social. E isso lhe marcou profundamente. Enquanto seus colegas gabavam-se de viagens internacionais e pequenos luxos, Duran saía da aula e adentrava a noite vendendo jornal numa esquina do Bairro Santelmo.
Aos 15 anos, arrumou um emprego noturno. Ganhava um peso por semana para cevar mate. Continuou entregando jornais, agora, às cinco da manhã. Também continuou estudando. E seguindo a tradição paterna, começou a escrever. Como jornalista e deputado federal, construiu uma carreira pautada pela crítica às desigualdades sociais e pela liberdade de expressão.
Foi correspondente internacional do Lá Nacion em vários países da Europa e América do Sul, além de Estados Unidos e México. Entrevistou e conviveu com os grandes líderes do século 20. Mas foi ao calvário pela palavra.
Membro da resistência contra a ditadura, não morreu por pouco. Não gosta de falar sobre isso. Tampouco se faz de vítima. Sobre o irmão caçula que ele levava para a escola, cala-se. Afinal, seu único irmão, Pedro, um coronel do exército, foi condenado à prisão perpétua por comandar um centro de torturas.
Ambos viviam em mundos opostos, mas num lapso de racionalidade, Pedro ainda ajudou Duran a deixar o país e seguir sua missão em solo brasileño. "Te vas", limitou-se a dizer.
Pedro morreu na prisão. Duran vive cantarolando pelas ruas de Cascavel. E é por todos que ele canta. Por homens e mulheres, sempre arrastando inocentes que a história deixou para trás.
Afinal, é isto um homem? Afinal, quantos Durans necessita o mundo para que voltemos a acreditar na paz?
Repare novamente na cadeira.
Ela tem a resposta! (Foto: Bruna Scheidt)
Rejane Pires Martins é jornalista