Das guerras napoleônicas às trumpeônicas
Alceu A. Sperança
Cresce nos meios científicos a convicção de que existe uma quinta força fundamental da natureza além das conhecidas - eletromagnetismo, gravidade, a nuclear fraca e a forte. Tudo ainda muito incerto, ela aparece em átomos de Berílio. Ou seria de Hélio? Não há certezas.
Enquanto os estudos prosseguem para provar a quinta força, é o quarto poder da sociedade que se arrisca a ser varrido, via cancelamento de assinaturas e balanços sem papel: a Imprensa. Pode ser cínico e sacana falar mal da Imprensa querendo esconder as malandragens de um bandido de estimação, mas ela merece ser mal falada. Faz água por vários furos e não necessariamente os de reportagem.
A Imprensa abarca todas as correntes e as ideias são expostas livremente, mas no geral prevalece uma: a bicentenária ideologia que vive em crise. Greves e caminhoneiros parados são forças reativas do universo humano contra as crises. Param o que já se arrastava como tartaruga. Aí a Imprensa diz que a economia se abalou por causa das greves ou dos caminhoneiros...
No fundo, ela apenas espelha a ideologia e suas ilusões. Quer que o Mercado ajeite as abóboras no andar da carruagem. Achou que a rebelião da Ucrânia pela internet era democrática, mas deu em neonazismo. Apoiou a Argentina trocar o populismo pelo neoliberalismo e colocou o Chile entre as nações que resolveram seus problemas. Tudo desandou de repente ou a Imprensa não viu que o caldeirão fervia?
Sob as ordens do Mercado
A chave da desmoralização da Imprensa é o Mercado. Para este, o modelo chileno, que ora desabou, era a sociedade perfeita: dê-me a alternância pacífica entre um ismo velho e um ismo novo e te darei um Mercado enriquecendo de boa. O Uruguai ainda segue o modelito: o paraíso é a alternância pacífica entre centro-esquerda e centro-direita (na verdade, entre o centro e ele mesmo).
O que a Imprensa faz, em suma, é atender aos interesses do Mercado. Não deu que o barril de pólvora chileno estava para explodir porque papai Mercado queria manter a estabilidade. E quem não quer um mundo perfeito? Só que a realidade um dia aparece e o custo das imposições, historicamente, é não funcionar para as maiorias. Que o diga a nervosa classe média em pé de guerra pelo mundo afora.
A"narrativa"mil vezes repetida que não dura na Imprensa também não vai durar nas redes. O mesmo Mercado que inflou a"marcha com Deus pela liberdade"apoiou as diretas-já, a Constituinte, Collor e a cassação de Collor, deu 90% de popularidade para Lula, tirou Dilma e engendra algo no breu das tocas, tudo em nome da estabilidade enriquecedora.
Publicidade farta e gratuita
Toda crítica embute em si o seu contrário: ao desancar a Folhona e a Globo, o presidente Jair Bolsonaro faz forte propaganda para essas empresas. Para ter espaço tão amplo, teriam que pagar fortunas aos demais canais, jornais e robôs de zaps.
Criticar qualquer coisa, até a nojenta Golden Shower, é lhe dar relevo e importância. O mesmo vale para a Imprensa. Quando xingada em altas proporções, multiplicam-se os interessados em ler o que jamais seria lido se ficasse quieto em suas páginas. Poucos leriam a biografia desautorizada de Roberto Carlos se ele não a promovesse com queixas.
?Nossa república e sua Imprensa crescerão ou fracassarão juntas?, já dizia Joseph Pulitzer. Cresceram e deveriam ter se firmado como os polos centrais da vitória liberal, mas se arriscam a falir por não resolver os desafios desta época: economia bagunçada, desigualdade eternizada, educação pisoteada e saúde pesteada.
Incertezas e pobreza
Como no bate-cabeça em torno da quinta força, as incertezas são muitas e é normal que a Imprensa as exponha. O Ministério não adverte, mas o mundo, como está governado, faz mal à saúde, ao meio ambiente, à razão. Houve um tempo parecido. Foi o Ano da Pobreza, quando o clima planetário sofreu algo como o que acontece hoje. As causas do Ano da Pobreza foram as guerras napoleônicas e as erupções vulcânicas de 1815 no Monte Tambora, que detonaram anormalidades climáticas severas.
Hoje, nas guerras trumpeônicas, o FMI lamenta o nacionalismo, refugiados sofrem horrores, cientistas são perseguidos, a cultura terraplanou, as cinzas das queimadas apressam o degelo nos Andes, não se sabe de onde veio o óleo e a poluição dos mares não é dos modelos econômicos avalizados pelo Mercado, é"do homem".
Saber disso pela Imprensa ou fora dela resolve alguma coisa? Uma Imprensa profissional, pluralista e autocrítica vencerá as iradas tuitadas dos donos da economia, da política e da ideologia?
Depois do Ano da Pobreza vieram tempos prósperos em que a convicção ou consenso vinha da leitura crítica e respeitosamente debatida de"artigos de fundo"da Imprensa. Hoje, tuitadas criam convicção instantânea, dispensam consensos e abalam bolsas. Até quando vai a Idade da Pedra virtual antes que se alcance o Iluminismo virtuoso ainda não se sabe, mas a Imprensa estará lá para divulgar o fato.
Foi assim com os Pentagon Papers, assim será com os papéis de todos os pentágonos que ousem esconder os fatos. E la nave va: os estudos sobre a quinta força do Universo continuam incertos e a morte do quarto poder ainda não é um fato.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br