Inovação: computando o papel dos castrados
Alceu A. Sperança
Elas agitam os perturbados, sacodem o sossego dos sossegados, semeiam medo, terror e repressão. Mas quando não foi assim? O mundo vive desde sempre uma história de polarizações. Quem revisar as aulas de História vai desencavar embates sangrentos. A social-democracia e o "globalismo" da ONU, no pós-guerra, criaram a ideia de que poderíamos viver em paz e nos tolerar uns aos outros de boa, como diz a piazada. Mas, olhando para trás no tempo, quando não houve polarizações?
A polarização entre as ruinosas políticas econômicas dos imperadores romanos e os povos que sofriam com elas deu no esfacelamento da maior máquina de poder militar então conhecida. Sua destruição pelos povos bárbaros foi facilitada pela exploração das contradições dos grupos dominantes. E a burguesia se erguendo violentamente contra os reis foi a última grande polarização finalizada.
O parto do papel
Houve, bem antes da revolução burguesa, a polarização entre os escravos ignorantes e os sábios que controlavam a produção de pergaminhos, peles nas quais eram escritas as informações privilegiadas e o conhecimento guardado a sete chaves pela elite. Na China, os segredos da ciência e da cultura ficavam gravados em seda cara, inacessíveis às multidões.
Um escravo, o chinês Cai Lun, além de perder a liberdade também foi castrado. Eunuco, ficava-lhe difícil se enquadrar no polo azul de menino da ministra Damares. É difícil imaginar alguém mais desgraçado, inválido e infeliz que Cai Lun, em pleno ano 105. Mas foi ele quem deu o grande salto tecnológico da antiguidade, um dos mais importantes para a história humana.
De tanto lidar com casca de amoreira e fibra de bambu, Cai Lun inventou o papel. Criado o papel, já seria possível a imprensa, que alguns acham que veio com Gutenberg mas é coisa também mais antiga. E também chinesa.
O parto da imprensa
Para polarizar um pouco em cima da imprensa, digamos que Gut nos deu um tipo de impressão, mas a imprensa vem de muito antes. O primeiro jornal em papel, Notícias Diversas, data de 713 d.C. E os tipos para imprimir, o 5G da época, apareceram em 1041 - tudo na China e séculos antes de Gut.
Desde que se tem notícia, a imprensa, inicialmente panfletária e hoje publicitária, sempre foi perseguida. Já a impressão era tolerada sob o controle da nobreza e do clero. Na Rússia, por exemplo, foram impressos vários livros religiosos a partir de 1550. Ninguém se irritou com isso, mas quando a imprensa começou, por ordem do imperador Ivan, o Terrível, em 1553, começaram a circular papéis impressos e a nova tecnologia provocou a revolta dos velhos escribas.
Ora, se você imprime um texto, vai desempregar um escriba, que vive disso: de copiar textos raros e vender as cópias aos nobres. É como um cirurgião cardíaco enfrentar um robô que faz a mesma cirurgia sem parar para o relax do golfe.
O descontentamento dos escribas deu no terrorismo de um incêndio criminoso. Os impressores Ivan Fedorov e Pyotr Mstislavets tiveram que fugir de Moscou para a Lituânia. Mas quem há de calar a imprensa? Voltou em 1568 com Andronik Nevezha e até hoje sobrevive a calúnias, assinaturas canceladas, incêndios e empastelamentos.
O parto do computador
Um escravo castrado nos deu o papel, revolucionária criação que gravou conhecimentos e os acumulou até chegar ao computador. Parece incrível, mas outro castrado abriu as portas a essa extraordinária conquista, tão importante em nosso tempo quanto o papel na dinastia Ming: Alan Turing, um dos inventores do computador, homossexual que também não vestia o azul exigido pela sociedade conservadora, foi perseguido cruelmente e sofreu a violência de uma castração química.
Mesmo assim, seu gênio deu os passos fundamentais para aquilo que mais interfere hoje em nossa vida: o algoritmo. Dá o que pensar o fato de dois castrados sexualmente serem os responsáveis por tão importantes e decisivas transformações.
Aquilo que os sofridos Cai Lun e Alan Turing fizeram é chamado hoje de "inovação", que seria a melhor resposta para o desafio do atraso brasileiro, cultivado em séculos e mantido pela mentalidade que ainda louva costumes medievais repressivos e castradores.
O parto da inovação
Sem inovação o Brasil continuará esse mar manchado pelo óleo da mediocridade e envolto na calorenta fumaceira da omissão. Tomara que não desandem a agredir e castrar os pobres, equivalentes de hoje aos escravos de ontem, na ânsia de que novos gênios apareçam do nada para suprir essa imensa carência. Debate e respeito mútuo sempre funcionam melhor que GLOs.
A inovação não combina com preconceito, intolerância e desinformação. Inovar requer pensar, estudar, pesquisar, experimentar. Ir além e romper o estabelecido pelas crenças e pela própria ciência.
Intolerância e anticiência desunem povos e castram nações. Vão dar na maldição formulada por Ernest Rutherford, o cientista neozelandês que concebeu o modelo de átomo: "Povos sem ciência e sem técnica estão condenados a carregar lenha e água para os mais esclarecidos". Lenha, aliás, que sai dos desprotegidos troncos das árvores amazônicas. Água? Economiza 2.300 litros quem compra um quilo de soja.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br