O jogo do poder
Carlos Antonio Reis
O Congresso Nacional, em tese, representa politicamente todo nosso Brasil. Lá são definidas as regras que determinam, em grande medida, diretamente nossa vida em todas as áreas, da economia à política cultural. Gostemos ou não, é lá que as coisas acontecem. É naquele espaço que os mais variados setores têm representação e tentam fazer valer seus interesses.
No Parlamento se encontram representados o agronegócio, os ambientalistas, os negros, os índios, os trabalhadores, os católicos, os evangélicos, os ateus. Portanto, é no Parlamento que todas as questões de interesse nacional se apresentam, são objeto do debate e se convertem em leis que regulam a vida dos brasileiros em suas múltiplas dimensões.
Essa pluralidade de ideias e interesses, por vezes antagônicos, se apresenta na arena da política. Assim é o sistema político de divisão de poderes, proposto por Montesquieu (1689-1755) e que o mundo moderno político ocidental adotou para organizar o Estado e a sociedade. Com o Estado cuidando de seu bem mais precioso, o seu povo. Executivo, Legislativo e Judiciário independentes e harmoniosos entre si a serviço da sociedade. Bonito! Perfeito! Uns executam, outros propõem e fiscalizam e terceiros mediam, cuidam e zelam para que tudo isso funcione.
Bom, o que pretendemos com essas ilações? O leitor mais politizado poderá pensar: isso não é obvio? Não no Brasil. Aqui o jogo é duro, é diferente, é pesado.
Vejamos: se o Congresso representa os brasileiros e naquele espaço tudo é submetido ao crivo dos parlamentares, é fundamental que o Executivo estabeleça uma ótima interlocução com o Parlamento. Isso é republicano, é salutar. Mesmo em pautas antagônicas, há que se dialogar e as partes, mesmo com interesses conflitantes, devem construir políticas que atendam aos interesses da população e possibilitem os avanços necessários. Cada parte ouve a outra, cede em alguns pontos e do embate deveria surgir algo bom, salutar. Mas, de novo, no Brasil não é bem assim.
Fica claro que é imperioso estabelecer diálogo com o Parlamento, construir consenso onde é possível. Ai entra a habilidade política e o carisma do presidente, ou então o que há de pior: essa relação converte-se numa relação comercial, com a "compra" de uma maioria parlamentar para fazer prevalecer o projeto do Executivo. O Parlamento converte-se num grande balcão de negócios. Exemplos recentes disso não nos faltam na história e memória recente da República.
Mas o que isso tem a ver com o Brasil atual? Com o atual presidente e o atual Congresso?
Vou tentar fazer aqui uma breve análise, baseada em conversas que mantive ao longo de dois dias com alguns deputados em Brasília, entre a entrega de um ofício e outro solicitando recursos para meu Município. Aliás, isso é algo que tem que acabar com novo pacto federativo. Entretanto, esse assunto não será tratado aqui.
Pois bem, na minha percepção nosso presidente ainda não conseguiu estabelecer esse diálogo republicano com o Parlamento. Notem que disse diálogo e não negociatas, antes que alguns bolsonaristas mais apaixonados venham com algumas pedras na mão afirmando que nosso presidente não usa esse expediente, até então habitual. Verdade, não faz isso. Ou faz? Não sei. Aparentemente não tem usado desse expediente, mas por outro lado ainda não conseguiu o dialogo propositivo com o Congresso.
O leitor deve estar pensando: nosso congresso é corruptível, legisla em causa própria. Talvez tenha razão. Lembro de uma frase que li algum tempo atrás no jornal Pitoco e que me permito reproduzir aqui: "Nossos políticos não sobem do inferno e não descem do céu, surgem das urnas".
O Congresso é reflexo da sociedade brasileira e, mesmo que a conduta de alguns deponha contra, existem lá pessoas que honram seus mandatos. É com esses que tem que se estabelecer o diálogo aberto e transparente e a população entender que sua participação não se encerra no dia da eleição, no ato formal de votar. Pelo contrário, ali é apenas o início do processo. A democracia plena requer participação e compromisso de eleitos e eleitores.
Alguém já deve estar perguntando: mas não avançaram reformas importantes para a economia? Verdade, avançaram. Mas se fosse pelo presidente, nada teria acontecido.
Com todo respeito, nosso presidente se envolve de maneira juvenil em polêmicas que não levam a nada, alimentadas e muitas vezes provocadas por seus diletos rebentos.
As redes sociais foram, sem dúvida, importantes para garantir sua eleição, em grande parte porque a população estava ávida por mudanças, pelo novo e pelo diferente. Bolsonaro habilmente catalisou essa insatisfação. Foi o suficiente para ganhar a eleição. Mas não se governa pelas redes sociais, não se manda recados grosseiros aos seus opositores. Precisa mais que isso. Muito mais, e isso falta ao nosso presidente.
Quem está conduzindo a pauta econômica e foi ungido pelos liberais para cuidar disso é o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Sim, ele mesmo. Mas por que ele? Na verdade, o grande poder no Brasil não está no Planalto, não está em Brasília. O poder de fato está na Avenida Paulista, onde pulsa o coração econômico do Brasil. Ali estão as poderosas Fiesp e a Febrabam, ícones do capitalismo brasileiro.
Há muito tempo Brasília é, em grande medida, comandada da Avenida Paulista. Nos governos Lula/Dilma essa também foi a regra. Historicamente, os representantes do poder econômico tentam moldar o poder político de acordo com seus interesses.
Pois bem, já que o presidente não consegue o papel de protagonista, ao Rodrigo Maia foi dada a tarefa para avançar a pauta econômica ultraliberal, fazer aprovar as reformas. Até aqui tem logrado êxito. Qual, então, será o final desse governo? O que podemos vislumbrar para os próximos anos? Bolsonoro concluirá o mandato? Será candidato com viabilidade eleitoral em 2022?
Bom, agora me permito conjecturar, sempre com base no que ouvi em Brasília, nos corredores do Congresso. Há algumas possibilidades. Os representantes do poder econômico, sediados na Avenida Paulista, podem abreviar o mandato de Bolsonaro por meio da cassação da chapa com Mourão. No TSE alguns processos já tramitam nesse sentido. Na atual conjuntura, acredito ser improvável especialmente porque ocorreriam novas eleições.
Outra possibilidade, segundo ouvi, e com chance de prosperar, é propor o impeachment de Bolsonaro. Já repousam na mesa do presidente da Câmara alguns pedidos. E aí assumiria o vice Mourão. Bem articulado politicamente, Mourão goza da confiança da turma da Avenida Paulista e, obviamente, conta com o apoio das Forças Armadas.
Bolsonaro continua no poder por dois motivos básicos. Primeiro, porque a pauta econômica ultraliberal está avançando, apesar de suas trapalhadas. Mas lembre-se que quem cuida dessa pauta é o Rodrigo Maia. E segundo, porque uma ruptura agora não seria boa, pois estancaria o processo em curso - privatizações, reforma tributária etc. Novas eleições tirariam Mourão do páreo e a possibilidade de retorno de um eventual governo capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores é uma das possibilidades abertas.
Então não duvidem: transcorridos dois anos de mandato de Bolsonaro, abre-se a possibilidade do impeachment e de Mourão assumir. O leitor nesta altura deve estar pensando: esse sujeito é maluco, pois sua fértil imaginação especula que está em curso uma grande conspiração perpetrada por forças ocultas. Pode ser que tenha razão. Mas lembre-se que desde 1988 o Congresso tirou do comando da nação dois presidentes (Collor e Dilma) e manteve Temer mesmo com provas robustas que poderiam desalojá-lo da Presidência da República. Em se tratando de Brasil tudo pode acontecer, inclusive nada.
Mas nosso raciocínio não é tão lunático como alguém pode pensar. No dia 28 de março Mourão jantou na casa do presidente da Fiesp, Paulo Skaff. O jantar reuniu nomes fortes da indústria, políticos e artistas. Entre os empresários, estavam presentes David Feffer (grupo Suzano), André Gerdau (grupo Gerdau), Josué Gomes (Coteminas), Carlos Trabuco (Bradesco). Lembram que no início do texto fiz referência à turma da Avenida Paulista (Fiesp e Febraban). Ei-la aí. Entre os políticos estavam Henrique Meirelles e o ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim. Essa turma aposta no Mourão. A seleta lista detém mais de um trilhão de reais em patrimônio. Os mais incrédulos busquem lá no Antagonista e na revista IstoÉ Dinheiro.
Tem ainda nessa conjuntura e na lista de possibilidades dessa turma, como uma carta na manga, o ex-presidente Lula. Qual o papel que lhe caberia nesta conjuntura? Pela atual legislação ele não pode ser candidato, mas cá entre nós isso não significa muita coisa. A legislação pode ser "moldada"para viabilizar uma eventual candidatura ou, ainda, ele pode concorrer sob judice. No caso de uma vitória eleitoral, dificilmente o Judiciário deixaria de diplomá-lo. Por enquanto, tal possibilidade não tem muita força. Entretanto, Lula está Livre e já iniciou a sua caravana pelo Brasil como o polo oposto de Bolsonaro.
Para viabilizar a possibilidade de retomada do governo, Lula vai ter que apostar na polarização, na referência da oposição. Lula Livre cria dificuldades e, ao mesmo tempo, favorece Bolsonaro. Lula e seu eventual representante na disputa eleitoral, tanto quanto Bolsonaro, precisam "unir sua tropa", e a polarização favorece a ambos nessa empreitada. Entretanto, para ganhar as eleições, precisam angariar votos para além de "sua tropa", para além de seus eleitores fiéis. Para tanto, precisam demonstrar capacidade de "pacificar o País", de "governar para todos", de "afastar os radicalismos".
A situação do Chile é um cenário que não agrada aos inquilinos da Avenida Paulista. Nesse aspecto, Lula está alguns passos à frente de Bolsonaro. Já governou e soube agradar setores que iam muito além daqueles que compunham a "sua tropa".
Vamos recordar que o Lula, no governo, fez certinho o jogo da turma da Avenida Paulista. Seu vice era um dos maiores empresários do Brasil e a chapa Lula/José de Alencar foi apresentada como a aliança entre capital e trabalho, capaz de "governar para todos". Lula não abriu mão do receituário econômico neoliberal e os rentistas da dívida pública continuaram contando com o orçamento da União para viabilizar a lucratividade do capital financeiro, graças às mais altas taxas de juros praticados no mundo e mantidas praticamente intocadas no Governo Lula, que agregou ao receituário neoliberal uma "agenda social" com a ampliação das políticas sociais compensatórias cujo emblema mais expressivo foi o programa Bolsa Família. De 2003 a 2010 ampliou as despesas orçamentárias da União com a assistência social de 0,96% para 2,60%.
Entretanto, nesse mesmo período, destinou em média 19,65% do orçamento da União para as despesas com juros e amortizações da dívida pública. Lula, desta forma, procurou contemplar os mais pobres e os mais ricos. Fez o jogo político-econômico quase perfeito. Um líder dito de esquerda que cooptou os movimentos sociais, sindicatos, entre outros, encantou o capitalismo tupiniquim e internacional, procurando compatibilizar os interesses do capital e do trabalho. Agradou os verdadeiros detentores do poder nesse País (Fiesp e Febraban, dentre outros) a tal nível que concluiu dois mandatos e ainda fez a sucessora, que caiu por conta, especialmente, de uma conjuntura econômica internacional desfavorável e falta de habilidade política no jogo do poder. O modelo implantando por Lula, baseado na expansão do consumo interno e no crédito facilitado, diante da retração do mercado internacional para as commodities brasileiras, inviabilizou-se. Enquanto funcionou, muita gente estava feliz. Empresários (leia-se Fiesp), agronegócio, construção civil, bancos (Febraban) e grande parte da população viram suas condições de vida melhorarem com o aumento real do salário mínimo, com ampliação de políticas sociais de caráter compensatório e com o crédito facilitado que permitiu o acesso do setor mais pauperizado da população aos bens de consumo duráveis, muitas vezes às custas do endividamento familiar.
Nesse jogo sucessório, correndo por fora, Rodrigo Maia pode ganhar força pelo seu bom trânsito nos meios políticos e pela simpatia que vem angariando junto à turma da Avenida Paulista. Entretanto, o apoio da "Casa Grande" não garante a vitória eleitoral. É preciso densidade eleitoral, contando com o voto de amplos setores populares, inclusive dos mais empobrecidos. Nesse quesito residem as dificuldades de Rodrigo Maia. Num cenário polarizado entre Lula e Bolsonaro, as dificuldades do atual presidente da Câmara se potencializam. Tal raciocínio vale também para uma eventual candidatura de Luciano Huck, que vem sendo articulada, dentre outros, por Fernando Henrique Cardoso. Em 2022, num clima eleitoral polarizado, candidaturas de centro terão as mesmas dificuldades enfrentadas por Alckmin e poderão ter o mesmo resultado desastroso.
Texto longo de quem não tem a pretensão de ser analista político. Sou apenas um observador do cotidiano da política. Uma simples reflexão de tudo que tenho observado, ouvido e lido nos últimos tempos.
Meu objetivo é me aventurar na arte da reflexão e da escrita. Meu objetivo não é agradar a todos.
Ao leitor cabe julgar, concordar ou discordar. Numa democracia plena, cabe a quem escreve e a quem lê o direito inalienável da crítica, da liberdade de opinião. Encerro citando o professor Leandro Karnal, cuja palestra tive o privilégio de assistir dias atrás em Foz do Iguaçu: "Radicalismo derruba democracia e nunca edifica de verdade".
Carlos Antonio Reis é prefeito de Anahy - carlaoanahy@gmail.com