Quanto lucro deu a última briga entre nações?
Alceu A. Sperança
Uma grande ilusão em tempos de polarização é a de que a narrativa predominante triunfa. Bandos de guerrilheiros virtuais enchem a paciência dos amigos disparando baboseiras contra inimigos reais ou imaginários mas no fim, depois de tanta briga, as coisas ficam mais ou menos do mesmo jeito. A narrativa que vence, na real, é sempre a de quem controla o poder político, independente do quanto os pinguços briguem nos botecos, breu das tocas ou redes tóxicas.
No Brasil de hoje, o controle político está nas mãos do Centrão e seu parlamentarismo branco demodebê (DEM+MDB).
Uma antiga briga entre narrativas se deu com Itaipu, nos anos 1960, na transição do trabalhismo janguista para a tecnocracia ditatorial. O deputado Lyrio Bertoli propôs a construção da hidrelétrica em Ilha Grande, baseado na narrativa do respeitado engenheiro Octávio Marcondes Ferraz, um dos pais da Eletrobrás.
Eles rejeitavam a ideia de fazer Itaipu com o Paraguai. Propunham hidrelétricas apenas em território brasileiro, que poupariam as maravilhosas Sete Quedas da destruição. Uma narrativa perfeita e redondinha.
No entanto, contra toda a lógica, venceu a decisão ditatorial de impor Itaipu. Deu nisso: o Paraguai cheio de exigências e o Brasil pisando em ovos para não repetir o vexame da guerra antiga. O narrador até pode ter razão, mas no fim a decisão será política.
Tia do Zap, a simpaTia que induz a erro
As narrativas em torno da renegociação do Anexo C do Tratado de Itaipu, que expira em 2023, são estranhas, envoltas em denúncias, negócios por fora e aquilo que acompanha as brigas "ideológicas"em geral - a desinformação, com as versões colidindo e se anulando. O cidadão sem paciência para pesquisar o assunto aceita a opinião furada da tia do Zap porque venceu a assinatura do veículo de imprensa profissional no qual ainda confiava e não renovou porque titia falou mal dele.
Uma narrativa sustenta que o presidente Jair Bolsonaro vai tirar de letra o problema, pois é amigo do presidente Marito Abdo. Os pessimistas acham que a bomba vai estourar das mãos do sucessor de Bolsonaro, que pegará Marito fragilizado no último ano de mandato. Presidente frágil faz o quê? Tenta se fortalecer na base das bravatas e rompantes nacionalistas patrióticos.
Há sinais de que a narrativa mais crível no momento é que, sendo amigo do presidente paraguaio, o brasileiro conseguirá um acordo bom para os dois. Bolsonaro tem eleição em 2022 e Marito terá a sua no ano seguinte. Resolver tudo antes, entre 2020 e 2021, seria bom para o futuro político dos dois, porque na última hora entram os fatores políticos, os pitacos dos marqueteiros e o nacionalismo à flor da pele.
Claro que essa coisa de amigo é meio complicada. O presidente dos EUA, Donald Trump, é amigo do brasileiro, mas Bolsonaro trouxe mais coisas da China que tanto criticou e das Arábias que irritou com a Embaixada em Jerusalém que de Washington ou Virgínia. Amigo é coisa pra guardar no lado esquerdo do peito, mas há casos em que se recomenda cuidado para não enfartar.
Anexo C ou anexação do Paraguai?
A narrativa brasileira é que o Brasil bancou tudo em Itaipu e o Paraguai só entrou com a geografia. Se arrependimento recuasse o tempo, o Brasil teria seguido o engenheiro Marcondes Ferraz, descartando a pior solução: a narrativa paraguaia hipernacionalista de que o Brasil paga uma miséria pela energia que compra, abusa de ser uma média potência e viola os direitos do vizinho pobre.
Mesmo faltando um Barão do Rio Branco e sobrando um duvidoso Ernesto Araújo, não há guerra à vista. Não seria sadio achar que conflitos entre nações possam trazer algum bem. O cara que venceu Napoleão, Wellington, disse que"a pior desgraça depois de uma batalha perdida é uma batalha ganha".
Claro que uma bela Base Aérea em Cascavel, prometida desde que o posto local da FAB foi desativado, há 70 anos, ficaria bem no retrato e no mapa.
Já a narrativa dos cidadãos, tanto brasileiros quanto paraguaios ou refugiados, é uma só: "Não mexam na nossa conta de luz!"
Mais no breu que à luz do dia
Há uma estranhíssima filosofia em voga, mais no breu das tocas que propriamente nos botecos, segundo a qual os militares ganhariam o amor e o pleno respeito da população se envolvendo em uma guerra. Há dois erros graves embutidos nessa ideia: primeiro, os militares são respeitados quando respeitam a Constituição e preservam a democracia; segundo, o Brasil já se envolveu em uma guerra continental e os resultados foram desastrosos.
Problemas com vizinhos são normais e o Barão do Rio Branco, o monarquista que encantou a República, ensinou bem isso, ao desenvolver uma diplomacia de ótimos resultados.
Sobrou só o caso dos brasiguaios da região do Quaraí, onde nasceu o nosso Sandálio dos Santos. Eles se sentem mais uruguaios que brasileiros e por conta disso o Uruguai quer rediscutir a posse de 22 mil hectares que o Brasil considera seus e os moradores de lá, em espanhol, dizem que não é.
O Uruguai alega que houve um erro ao definir o Arroio Invernada como fronteira no tratado de 1851. Essa bronca dá pra empurrar com a barriga até 2051 sem problemas na cotação cambial ou desequilíbrio no comércio global, mas o Anexo C não pode esperar. Na última vez em que os países do Cone Sul brigaram entre si, a Argentina se deu bem, o Paraguai foi destruído e o Brasil está endividado até hoje. Desta vez, sem brigas, por favor. Amigos no lado esquerdo do peito dão mais lucro.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br