A dúvida pulguenta que nos assusta
Alceu A. Sperança
Nunca tantos e tão bons generais perderam tantos e tão influentes cargos quanto nos últimos meses. Apurando bem, talvez só na polarização entre as turmas dos marechais Deodoro e Floriano aconteceu algo parecido. Inevitavelmente, a constância e a rapidez com que são descartados detonam uma série de dúvidas, indagações e raras certezas.
As dúvidas são muitas e começam por um questionamento: terá o governo a capacidade de criar uma burocracia mais eficiente que a atual? As apostas estão divididas, coisas da tal polarização.
Dentre tantas dúvidas, há uma que põe um pulguedo atrás das orelhas de muita gente, mesmo de quem não se deixa dopar pelos robôs das redes. Trata-se do mito de que os militares interferem no governo como faziam no passado: se eles realmente interferem, por que tantos militares são despejados do governo e as Forças Armadas continuam sossegadas nos quartéis, cumprindo seus deveres constitucionais, saindo apenas quando chamadas para alguma eventual GLO? Que interferência é essa?
A mesma interferência que se notou, com muito silêncio e raros gritinhos, durante todo o ciclo Collor-FH-Lula: sendo apenas cidadãos quando tiram a farda, alguns militares piaram além da conta e foram punidos, como aconteceu com o general Hamilton Mourão. Que ninguém se deixe picar por pulgas ou seduzir por vivandeiras. No geral, honrados, eles se dedicam aos deveres constitucionais.
Coitado ganhou a briga
Seria chamado de"vagabundo?, como se grita muito ultimamente, quem dissesse em maio que logo em junho o respeitado general Santos Cruz, gaúcho heroico e forte que vinha de campanhas elogiadíssimas no comando das forças da ONU no Haiti e no Congo, cairia estrepitosamente em desgraça.
A mídia criticada pelos robotizados deu que Santos Cruz era"o general mais poderoso do governo". Se era assim tão poderoso, por que caiu? Como pode sair, contra a vontade, um general respeitado em seu país e no mundo, encarregado de cuidar da articulação política com estados e municípios, emendas parlamentares, contratos de publicidade, concessões na área de infraestrutura e muito mais? Tudo isso bem conduzido não poria o País nos eixos?
Também colocado em elevada função para moralizar a coisa, o general João Carlos Jesus Correa, nomeado em fevereiro para presidir o Incra, levou a sério a missão de fazer"o saneamento de um órgão que era um esgoto". Foi derrubado em sete meses pelos donos do esgoto, acobertados por um dos deputados mais medíocres do Brasil, Nelson Barbudo (PSL). Barbudo, aliás, tripudiou sobre o general derrubado:"Ele não se conforma de perder a briga para um coitado como eu".
Assustou e foi estudar
Em sua edição de setembro, a revista Conjuntura Econômica, do Ibre/FGV, fez seus leitores caírem de costas de susto ao ler a declaração do chefe do Departamento de Gestão Pública da própria FGV, Fernando Abrucio, de que"com a reforma da Previdência acabará o período mais pacífico do governo Bolsonaro". Até essa entrevista muitos contribuintes bobinhos acreditavam, ipirangados, que após a reforma viriam a paz, a segurança e a prosperidade.
Abrucio disse aquilo e pulou fora: foi aos EUA estudar políticas públicas para a educação com Ben Ross Schneider, diretor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o mítico MIT.
Mas"isso daí"são apenas alguns itens ruidosos pinçados dentre os inúmeros casos surpreendentes e assustadores de agressões, ofensas, brigas, polêmicas, crises e decisões que os robôs aplaudem mas não duram horas.
Isso tem sido trivial desde janeiro, seguramente por culpa da oposição. Essa oposição que bagunça o funcionamento do governo e o divide em alas rancorosas e briguentas, como se viu na casa dividida do PSL. Uma oposição que tem nome: o olavismo, a nova saúva do país, recuperando a sentença de Macunaíma.
É crer para ver
Por que tudo isso nos assusta e nos surpreende? Não é nada muito diferente do que acontece nos EUA de Trump, na França de Macron, na Argentina de Macri, no Chile de Piñera, Hong Kong, Ucrânia, Venezuela, Espanha, Turquia, Hungria... Neste mundo, vasto mundo, ninguém está contente, a não ser os crentes em magia, que julgam tudo isso a maldade profética necessária para trazer o Bem final.
No filme Planetarium (Rebecca Zlotowski, 2016) um gênio das finanças se arruína por acreditar que uma jovem"médium"o faz ter contatos com"espíritos"de mortos. A irmã da sensitiva a usa para ganhar dinheiro em shows. Depois da desgraça ela confessa ao homem falido e preso que a vidente só manipula as pessoas a visualizar aquilo em que acreditam. No fim, o que queremos crer e até achamos que vemos pode nos arruinar.
Se o governo vai mal por interferências esotéricas é porque falta ao povo descartar de vez as ilusões pulguentas e entrar em cena com trabalho, diálogo e ciência. Por ora, a única certeza no Brasil de hoje é que apesar dos polos coxinha e mortadela briguentos verem cada qual só o que querem crer, o"médium"Centrão continua dando as cartas e saboreando o caviar.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br