Um Messias fake e um ditador real
Alceu A. Sperança
Mentiras e fantasias são velhas malandragens. Funcionam como fuga da dura realidade, mas ficam perigosas quando atribuem dotes espirituais a ações desumanas. Nesse faz de conta, fazer o bem e causar o mal viram lados da mesma moeda: em nome do bem, até matar e torturar não são mais pecados. Os dez mandamentos viraram nove, talvez menos.
O Prêmio Nobel, ativo humanitário derivado de um produto que tanto matou - a dinamite - faz parte dessa velhíssima prática de dourar a pílula, maquiar o cepo, colorir a guilhotina. Reflete a tendência de nas crises cultivar fantasias para mascarar a realidade: discos-voadores, mexericos sobre famosos, inimigo interno.
No ano passado houve uma grande confusão e só agora o Nobel apresentou em literatura os vencedores correspondentes aos anos de 2018 e 2019. A premiada retroativa de 2018 é a brilhante escritora polonesa Olga Tokarczuk. Com razão, os poloneses aqui do Paraná exultaram com o prêmio.
Por que Olga venceu a corrida do Nobel é uma especulação interessante, considerando que ela ficou famosa contando a história de um líder polêmico: Jacob Frank (1726-1791). Comerciante judeu que se declarou o Messias depois de encher a cabeça com um monte de credos e sintetizá-los numa seita que misturava ritos religiosos com sacanagens sexuais, Frank faz lembrar "astrólogos"que depois de convertidos a crenças diversas escolhem o insulto como palavra mágica.
Fanático se dizendo "o salvador", mas na realidade fazendo sacanagens não é coisa comum só no reino das crendices: também faz sucesso na política e na economia.
Ingênuo só na língua
O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2019, o austríaco Peter Handke, é encrenca pura. Logo que a Academia Sueca o anunciou, a presidente do PEN America, Jennifer Egan, romancista e vencedora do Prêmio Pulitzer, reagiu furiosamente: repudiou que o escritor, depois de colocar em dúvida crimes de guerra comprovados, fosse premiado com o Nobel a pretexto de "ingenuidade linguística".
Por que tanta fúria contra o escritor que encantou o mundo com uma cativante poesia sobre a criança no filme Asas do Desejo, parceria com o festejado cineasta Wim Wenders, em 1987? No poema, Handke pergunta: "Há mesmo o mal e pessoas essas que são verdadeiramente as más"?
O leitor talvez acredite que haja realmente o Mal e pessoas más. E muitos que também acreditam na existência da maldade e gente ruim também criticaram o escritor austríaco por defender o ditador sérvio Slobodan Milosevic. Como se não bastasse, quando Milosevic era julgado em Haia como criminoso de guerra e morreu, em 2006, Handke foi discursar elogios no funeral. Ser chamado de "fascista" pelo mundo afora foi o mimo mais gentil que ele ouviu a partir daí.
Bem que vira Mal ou vice-versa
O falso Messias historiado/romanceado por Olga Tokarczuk pode ser descrito como astro da polarização, essa coisa que joga irmão contra irmão e cultiva o rancor sem medidas até levar a uma violência maluca, em que qualquer tentativa de diálogo é atacada agressivamente pelos dois "polos".
Deu-se uma luta violenta entre judeus talmudistas e cabalistas. Jacob Frank a sintetizou na assustadora mistura que levou a uma confusão dos diabos, para dizer o mínimo. Dessa balbúrdia pseudorreligiosa surge a ideologia de que quanto mais o Mal tomar conta do mundo, mais próxima estará a vinda do Messias.
Então pode matar à vontade, torturar, queimar, desmatar, agredir, trucidar, ofender, mentir, falsificar notícias, eleger pulhas para os governos, envenenar os rios, poluir mares, espalhar doenças pelo ar - tudo isso é fazer o bem, pois servirá de apoio à vinda do Messias...
O horror que o leitor sente ao ler esses despropósitos traz de volta a pergunta feita no poema de Peter Handke: "Há mesmo o mal e pessoas essas que são verdadeiramente as más"? Se for para o Messias chegar mais rapidamente, todo mal fica bom ao ser cometido? E vale qualquer besta se dizer "o Messias"?
Nesse caso, é o Bem ofender pessoas, inventar mentiras, semear confusões, arrasar a economia do país, invadir nações, causar guerras e destruição ambiental, negá-la e encher os oceanos de plástico, derreter as geleiras, semear a fome, a crise, o desemprego, as doenças, o caos. Daí os escolhidos (quem tiver grana) irão para o céu (algum planeta ainda limpo).
Vale o escrito ou o militado?
Quem ainda não conhecia as obras de Olga Tokarczuk vai se deliciar com seu ótimo e cuidadoso texto começando por ler Os Vagantes. Já Handke é mais conhecido pelo público pelos anjos cinematográficos de Wenders, que se intrometem na vida terrena ao se deixar contaminar pelas paixões humanas.
Olga é considerada de esquerda, enquanto Handke é tido como de direita. Daí se pode ver a escolha da Academia Sueca para o Prêmio Nobel de Literatura correspondente aos anos de 2018 e 2019 como tentativa de agradar aos dois lados da polarização.
A suavidade de Olga defendendo os refugiados e o questionamento da maldade que colou na obra de Handke, à parte ser também um escritor primoroso (pode-se não gostar do cara, mas não desmerecer seu trabalho), deram uma sacudida no ambiente literário: o escritor/artista vale pelo que milita ou pelo que escreve?
Um Messias fake e anjos improváveis que ocultam um ditador real dão o que pensar. O reino de fantasia em que vivem as bolhas de poder leva o mundo ao caos em meio à obsessão de que só o que eles decidem vai "dar certo", embora tudo que decidiram até agora tenha levado à ameaça de mais uma grande crise mundial.
De qualquer maneira, a literatura, mesmo a fantástica, é a garantia de que nada de enganoso e manipulador ficará sem troco. Que a imprensa, sempre sob o ataque dos dois "polos", tenha a grandeza e a dignidade de fazer o mesmo.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br