O bicho arisco e o dinheiro desaparecido
Alceu A. Sperança
Animais domesticáveis podem ser atraídos com truques e depois de amansados oferecem ganhos diversos com criação, convivência ou sacrifício. Cães e cavalos também domam e cativam os seres humanos com olhares ternos. Já as cobras não melhoram quando tiradas de seu meio. Se houver chance, vão picar a mão que as afaga. Também não espere muito de outros ariscos, tais como raposas, zebras e tubarões. Hoje, porém, o bicho mais arisco do mundo deve ser o investidor.
Retraído com o fracasso da "nova matriz"do lulismo amantegado, esse bicho indócil foi exposto a uma isca sedutora: os domadores acreditaram que bastaria afastar a desastrada Dilma Rousseff da Presidência para sobrar dinheiro. Ninguém precisaria se preocupar com Queiroz ou corrupção, o déficit zerava, a economia cresceria num rojão e os investidores logo viriam comer na mão do governo, em meio a uma aleluia de estatais à venda em massa e concessões facilitadas.
Dilma caiu no azarado fim de agosto de 2016. Três anos depois, o crescimento está longe do rojão esperado. Com tantos cortes/contingenciamentos do orçamento não há dinheiro para ninguém sem lobby. O fantasma vivo de Queiroz assombra a República, o déficit persiste, a dívida aumenta - acaba de passar de R$ 4 trilhões - e os bichos investidores ficam mais ariscos ao ver obras paradas, nova política e velha política quase iguais e a ilusão de que tudo se resolve a bala e leis frouxas.
Bala de prata mataria o monstro
O custo de tantas ilusões é o desalento interno, a desconfiança dos investidores externos e a incerteza das famílias, que estoura nos corações e mentes dos jovens. Crentes em magia supunham que as reformas da Previdência e dos impostos cairiam do céu qual manás saborosos despejados por anjos e o "espetáculo do crescimento"(apud Lula) bafejaria o Brasil com um primeiro-mundismo automático.
Bastaria a Lava Jato estancar a corrupção e botar um bom contador no Ministério da Economia que o Brasil teria um surto, no bom sentido, de rica prosperidade. Os otimistas, animais fofinhos e carinhosos, achavam que o Brasil decolaria de imediato apenas com a eleição de um novo presidente e a onda de confiança que uma nova política poderia gerar substituindo a odiosa velha política do Centrão.
Apenas anunciar as reformas inadiáveis já seria a bala de prata que mataria o monstro do atraso. O sucesso do plano daria fim à polarização "ideológica", já que brigas rancorosas internas assustam não apenas os ariscos animais do dinheiro mas também os dóceis turistas. As Pirâmides do Egito atrairiam muito mais que 10% do turismo espanhol sem o medo de bombas e tiroteios.
No conjunto, é provável que as magias e balas prateadas possam funcionar no futuro, mas não bastou depor a presidente, não foi suficiente todo o transcurso do mandato-tampão de Temer e suas drásticas reformas. Como há tempo, espera-se muito do presidente Jair Bolsonaro e do entusiasmo de sua base, mas nada ainda conseguiu ser boa isca para o arisco animal do dinheiro decidir ser fofinho e abrir as burras para os investimentos mais espertos que o potencial brasileiro oferece.
Reformas tímidas assustam
"Sobra dinheiro no mundo", diz um sujeito que entende da matéria: o ex-ministro Henrique Meirelles. Esperava-se uma golden shower de dólares e euros com a segurança de que as reformas vão passar com certeza, negociadas pelo DEM e seus hábeis presidentes do Senado e da Câmara.
Com efeito, é dado e passado que lá tudo passa, desde que se molhem as mãos dos parlamentares do Centrão, hidra de 500 cabeças que se alimenta de crises e sempre dá as cartas na política, na gestão e na economia do país desde a mãe de todas as crises do pós-1964, detonada em 1980.
Experiente em ariscos e riscos, o economista Cesar Maasry, do banco gringo Goldman Sachs, estima que a volta dos esfomeados investidores estrangeiros para o Brasil não depende tanto das reformas aqui dentro, mas do que rola na China, Índia e África do Sul. Mundo difícil, esse, da globalização/globalismo, em que nem fazer a lição de casa dá boa nota.
O raquítico pibinho, para um país que já teve um barulhento Plano de Aceleração do Crescimento, não é boa isca para os ariscos investidores. Os bichos sentem que a reforma da Previdência é um remendo e vai furar em breve. A tributária não reduz impostos e a política só fortalece o Centrão. No Judiciário, personalismo e insegurança jurídica. No Executivo, decisões que mudam em horas.
Brasil virado numa Venezuela
O general Heleno Augusto, de quem se pode gostar ou não, mas jamais supor que seja um desinformado, estimou que sem mudanças positivas vamos virar uma Venezuela e disputar comida no tapa: - É tão evidente a premência do final deste filme para que a gente possa ter uma segurança econômica, que comece a atrair investimentos nacionais, investimentos estrangeiros - disse ele.
Mas aí veio a história das queimadas, a fumaceira se espalhando, a Vaza Jato, a Amazônia transformada em Malvinas, as incertezas quanto à guerra comercial entre EUA e China, o temor de uma nova, perigosa e explosiva recessão mundial. Com este cenário angustiante, como se fossem marsupiais guardando dinheiro na bolsa, os bichos ariscos chegam a ficar redondos de tanta bufunfa amoitada, mas preferem investir a lã no governo alemão, mesmo perdendo 0,5% ao ano.
Sobra muito dinheiro no mundo, de fato, mas não será atacando a "mídia"agressivamente que ela vai gentilmente acalmar os bichos medrosos. A maledicência, definitivamente, não funciona. Algo melhor terá que ser tentado. A tal da gentileza seria um bom insumo. Se o Brasil inspirasse confiança e o mundo não estivesse sentado numa bomba prestes a explodir, poderia atrair chuvas de dinheiro, suficientes para apagar qualquer queimada, inclusive o fogaréu "ideológico".
Contra nossos mais candentes sonhos, o bicho arisco ainda escolhe meter dinheiro na bolsa de raposa dos juros negativos a arriscá-lo em trópicos onde gente lacradora e de braços fortes prefere mais brigar que dialogar para se entender, deixando de trabalhar pelo bem comum para atiçar discórdias. E não venha mágico algum cuspir a conversa fiada de que Bem Comum é ideologia marxista cultural! Cuspe não cola.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br