O presidente louco e o ar engarrafado
Alceu A. Sperança
Com a falta de respeito humano nas redes sociais não há quem possa escapar de insultos, mentiras e a mais irritante acusação on line: - Tu é louco!
Sem ao menos um pequeno erro de grafia ou gramática, a ofensa não chega a ser um insulto militante. É, no máximo, um desabafo.
Ser carimbado como tantã até faz bem ao ego da vítima: neste mundo de indiferença, alguém tem sentimentos por ela e a põe em alta conta, já que chamar de malucos presidentes, reis, primeiros-ministros e ditadores (esses autoloucos) é um esporte universal.
Ser tido por louco, nesse caso, não é para qualquer um. Supõe-se que metade dos presidentes dos EUA foram doentes mentais, o que deixa 50% de chances para o atual, Donald Trump, também ser reconhecido como tal até o fim do mandato.
A menos que ele repita o incrível feito de Richard Nixon: depois de se eleger perseguindo comunistas, Nixon contrariou totalmente seus seguidores, fazendo acertos amigáveis com a URSS e a China em plena Guerra Fria. Agradando a gregos e troianos, crentes e descrentes, reelegeu-se espetacularmente. Trump já se acertou com Kim Jong-un. Se entrar em acordo também com Xi Jinping será difícil lhe aplicar uma camisa de força.
Justino II comia gente
Seria injusto atribuir às redes sociais e seus robóticos impulsionamentos a invenção do esporte de chamar celebridades de loucos. William Shakespeare já achava que "da loucura dos grandes não se pode descuidar", talvez pensando em Justino II, o comandante bizantino do século 6 acusado de comer, no sentido gastronômico do verbo, dois de seus servos.
George III, da Inglaterra, igualmente considerado louco, só foi de fato assim carimbado depois de perder a posse da colônia que hoje chamamos de EUA. Ele fez uma reforma tributária muito doida e pôs tudo a perder. Errar a mão em reforma é uma condição histórica para a pecha de louco. Aconteceu com Napoleão.
O durão Ivan IV, o Terrível, cegou seus arquitetos para impedir que no futuro projetassem algo mais belo que a Catedral de São Basílio, essa que todos mostram para simbolizar a Rússia. Há tanta controvérsia sobre o primeiro czar que a história dos arquitetos cegos pode ser apenas lenda. Mais provavelmente o consideraram louco por inventar a imprensa, que tirou o poder dos escribas e democratizou a informação.
Foi como criar a avó da Internet, que liquidou o poder da imprensa de tinta e propaganda, obrigada a ser hiperprofissional e altamente técnica para vencer as fakes impressas, faladas, iutubadas e ai (IA), robóticas. Alguém vai discordar disso, mas podemos discutir o caso sem nos chamarmos uns aos outros de loucos.
Em geral, os insultados nem são. Maria I não era louca, só uma fanática religiosa dentre muitas cabeças coroadas da época. Louco, mesmo, foi Calígula, aquele do cavalo senador. Certa vez, Calucho, para os íntimos, condenou à morte a família inteira de um homem que o insultou. Um ministro, horrorizado, fez-lhe ver que seria inadequado matar também a virginal menina de 12 anos que chorava em desespero ao ver os pais e irmãos chacinados.
Calígula reconheceu que seria de fato um horror matar uma virgem. Retire-se da sala agora quem não suporta crueldades, tipo carga tributária escorchante e dívida pública impagável. Saiu? Aí Calígula estuprou a menina e ordenou: - Não é mais virgem. Matem-na!
Línguas soltas
O irritado Donald Trump chamava Kim Jong-un de louco e agora o julga um parceiraço. O sempre ponderado José Mujica se irritou e sentenciou que Nicolás Maduro está "louco como uma cabra". No Brasil, julgar não é mais a suprema função do Supremo. Julga-se a toda hora, via zaps e trending topics.
A Grécia tinha só 7 sábios, mas o Brasil tem 77 milhões que lacram qualquer assunto nos zapgrupos. Já governantes malucos do tipo melancia no pescoço se contam às dúzias pelo mundo afora, mas o Brasil, tudo contado e medido, só teve um presidente reconhecido como louco, já que Jânio Quadros renunciou antes de ganhar o carimbo.
O único presidente louco, Delfim Moreira (foto), veja só, não pode ser acusado de cometer sequer a mais ínfima loucura. Bem educado, não atrapalhou o país, não telegrafou (hoje se diz tuitou) disparates e sequer tinha noção de que estava no poder ao substituir Rodrigues Alves, gravemente enfermo com a Gripe Espanhola, em novembro de 1918. Mais reinou que governou por oito meses.
Com o presidente eleito à morte e o substituto injustamente considerado lelé de pedra e incapacitado, o responsável pelas decisões era o ministro Afrânio de Melo Franco. Uma espécie de "primeiro-ministro branco", Franco foi o antilouco por excelência: ao invés de armar confusões, seu trabalho diplomático deu na solução da Guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, além de pôr fim ao atrito entre Peru e Colômbia quanto ao porto de Leticia.
Recentemente, com a falta de respeito já disseminada pelo país por conta da "polarização", palavrão que significa incapacidade para dialogar, chamaram o presidente Jair Bolsonaro de "louco"por justificar o trabalho infantil. Como ficou o dito por não dito a coisa parou ali.
A Bolsa de oxigênio
Quando menos se esperava, o carimbo de "louco"oficial do governo acabou pegando no ministro Paulo Posto Ipiranga Guedes. Criticado por dez entre dez líderes amazônicos, Guedes tentou limpar a barra sugerindo a criação de uma Bolsa mundial de oxigênio: - Queremos saber se os americanos reconhecem o direito de propriedade de oxigênio. Nós produzimos oxigênio para o mundo.
Na verdade, a Amazônia consome quase todo o oxigênio que produz, mas já é conhecido mundialmente o sucesso do empreendedor inglês Leo De Watts. Ele coleta ar puro e o exporta para cidades poluídas, onde, segundo a louca BBC, "elites pagam quantias consideráveis por poucos segundos de inalação". Se Watts pode ganhar dinheiro com ar, por que Guedes não pode?
Antes de pretender que americano bonzinho nos pague pelo ar que ele já respira de graça, Guedes prometeu salvar o Brasil faturando R$ 1 trilhão com privatizações e zerar o rombo do orçamento ainda em 2019. De bônus, baixar o preço do gás. Até o fim do ano veremos se o louco foi ele por prometer ou loucos somos nós por acreditar.
Do black bloc ao blockchain
Recomenda-se, por uma questão de respeito humano e à sagrada liturgia do cargo, poupar o presidente Jair Bolsonaro de ofensas à sua (dele) sanidade mental. Cabe é augurar melhoras na saúde em geral, dele, do povo doente e do Brasil na UTI.
Vai que o homem decreta o fim do desmatamento, zera as queimadas na Amazônia, adoça a imagem do Brasil no exterior e enriquece o povo com a grana recebida via blockchain pelo oxigênio nacional? Passará à história como grande estadista e porá quem o chamou de nomes feios na lata de lixo da dita cuja.
Um mundo louco julgará maluquice qualquer manifestação lúcida. Seria loucura esperar que o Brasil finalmente resolva seus problemas e um povo unido e pacífico se consagre como um exemplo para o mundo?
Chico Mário, irmão do Henfil, cantava que o Brasil "se cobrir vira circo, se cercar vira hospício". Cobertos pela Constituição perjurada e cercados pela "soberania"submissa, resta-nos entender, afinal, que doideira é essa de blockchain. Mas não se aflija: os 77 milhões de sábios do zap tratarão de explicar tudo direitinho.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br