Facada, tiro e doença: quando o poder faz mal à saúde
Alceu A. Sperança
Monarquista convicto, o marechal Deodoro da Fonseca estava doente naquele dia 15 de novembro de 1889, mas pulou do leito, montou o cavalo e à frente da tropa no Campo de Santana proclamou a República. Que milagre levou o velho militar enfermo a esse gesto, contrário à sua convicção?
A fake news de que o imperador Pedro II havia mandado prendê-lo não colou, mas houve um incômodo maior superando as fortes crises respiratórias que o prostravam ao leito: uma dor de cotovelo. Deodoro foi avisado que o novo primeiro-ministro, já escolhido pelo imperador, seria o líder liberal gaúcho Gaspar Silveira Martins. Seu inimigo desde a juventude, quando ambos disputaram o amor da Baronesa do Triunfo, Martins ganhou a moça quando quebrou uma perna e levou a pretendida para ser sua enfermeira.
Forçado a renunciar à sua desastrada Presidência, Deodoro sofreu a volta dos mesmos problemas respiratórios que o acometiam no 15 de novembro e morreu poucos meses depois de entregar o cargo ao marechal Floriano Peixoto.
O vírus da saudade
No início do inverno de 1887 o imperador Pedro II definhava e os médicos o levaram à Europa em busca de socorro. Em Milão (Itália) chegou a receber a extrema unção. Quando enfim se recuperou, em maio de 1888, estava apático e a princesa Isabel governava na prática. Em julho de 1889, o imperador seguia em carruagem quando ouviu o grito de"Viva a República!"e um tiro, disparado contra ele pelo jovem Adriano do Vale. O monarca escapou, mas o tiro acertou os republicanos. Arrasados nas eleições de agosto, elegeram apenas dois parlamentares.
O imperador já recuperado foi deposto pelo golpe republicano de 15 de novembro. Aconselhado a resistir, pois teria apoio militar e popular, não quis. Confessou-se esgotado e nesse gesto destronou Isabel. O desalento, assim, foi o último ato do império. Expulso do país, Pedro voltou a adoecer na Europa e morreu se queixando de algo ainda pior que a dor de cotovelo de Deodoro: saudades do Brasil.
Ótimos presidentes, mas...
Campos Salles presidiu o Brasil com sucesso entre 1898 e 1902. Preparava-se para uma nova eleição fácil em 1914, mas morreu de repente, ainda em 1913, de embolia cerebral. Antes, Rodrigues Alves, seu sucessor, eleito em 1902, teve ainda mais sucesso administrativo. Nadou no dinheiro proporcionado pelo auge do ciclo da borracha - o Brasil respondia por 97% da produção mundial - e até comprou o Acre.
Alves conquistou facilmente o segundo mandato em 1º de março de 1918 com a quase totalidade dos votos, mas contraiu a gripe espanhola e não tomou posse. Assumiu o vice-presidente Delfim Moreira, por sua vez vítima de uma doença que o deixou incapacitado, como vegetal. O sucesso na Presidência deixava como contrapartida a ruína pessoal.
Versões para os fatos
O presidente Washington Luís distribuiu a versão oficial de que teve uma crise de apendicite, mas foi baleado em maio de 1928 no hotel Copacabana Palace pela amante, a marquesa italiana Elvira Vishi Maurich. Nada mais deu certo para ele depois de sair do hospital: foi traído por seu"Posto Ipiranga?, Getúlio Vargas, e deposto em outubro de 1930. Por sua vez, poderoso por décadas e pressionado por militares pró-EUA a deixar o cargo, Vargas se suicidará em 1954.
As eleições presidenciais de 1955 foram vencidas por Juscelino Kubitschek sob a ameaça estressante de um golpe civil-militar. Com tensões a cada mês, o presidente interino Café Filho alegou questões de saúde para se licenciar do cargo e Nereu Ramos encerrou seu mandato. Ramos escapou vivo da Presidência, mas morreu no Paraná em junho de 1958, em desastre aéreo. Sem doença aparente, Jânio Quadros renunciou à Presidência em 1961. Doentio é o sistema: presidente forte sem apoio parlamentar produz as superbactérias dos impasses e da judicialização.
JK nunca desistiu de voltar à Presidência, mas morreu em agosto de 1976 em um controverso acidente contestado em livro por seu secretário particular, Serafim Jardim. Em 2013, a Comissão da Verdade de São Paulo anunciou que o ex-presidente foi assassinado, contrariando a Comissão Nacional. Também em 1976, caso ainda aberto, João Goulart teria sido assassinado por brasileiros na Argentina.
O Brasil adoeceu
Primeiro presidente da ditadura, o general Castelo Branco gerenciava uma disputa entre militares oriundos da Escola Superior de Guerra (os"pombos?) e a linha dura (os"falcões?), seguidores da filosofia da Escola de Guerra de Fort Leavenworth. Sob pressão, passou a presidência ao general linha dura Artur da Costa e Silva, empossado em março de 1967. Castelo morreu quatro meses depois de deixar a Presidência em um suspeito acidente aéreo: um avião da FAB teria atingido a cauda do avião em que ele viajava.
Em maio de 1969, agora sob pressão dos militares democráticos, o presidente Costa e Silva anunciou a convocação de uma comissão de juristas para elaborar a reforma que daria fim à ditadura. Uma semana antes da data prevista para a assinatura da emenda, em 31 de agosto, sofre um derrame cerebral. Morre em dezembro. Há 50 anos, portanto, o general passou mal e o Brasil ficou pior. A reforma democrática morreu com ele e só voltará com João Figueiredo e sua anistia, dez anos depois.
Era de complicações
Como Campos Salles, Tancredo Neves também morreu depois de eleito sem conseguir tomar posse na Presidência. Seguiu-se um período de democracia formal abalado por duvidosos planos econômicos, escândalos Mensalão e Petrolão, os efeitos retardados da crise de 2008 e as pedaladas fiscais da presidente Dilma, cassada em processo parlamentar alimentado pela grita furiosa nas ruas. Foi um período de políticos razoavelmente saudáveis, embora o Brasil estivesse bem doente.
Em clima de polarização ideológica, ofensas, rancores e conflitos fomentados por uma enxurrada de notícias falsas, o candidato à Presidência, Jair Bolsonaro, sofre atentado a faca em setembro de 2018. Há complicações, mas é eleito, assume em plena convalescença e sofre uma série de cirurgias.
O poder, nota-se nesta crônica de desgraças, sempre traz o risco de fazer mal à saúde e causar acidentes aos líderes. E o Brasil continua doente e pobre, mas, sendo imortal e tendo um povo bom se esforçando, ainda pode sarar.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br