Impessoalidade? Pare de dizer palavrões!
Alceu A. Sperança
Nunca antes na história deste país independente houve tanta confiança em que o Brasil seria uma rica nação quanto no dia 3 de maio de 1823. Nessa data o imperador Pedro I instalava a primeira Assembleia Geral Constituinte do Brasil, com a qual o povo escreveria suas próprias leis, finalmente livre das roubalheiras de Portugal.
Desde a primeira hora, entretanto, o monarca avisou: só aceitará a Constituição se ela "for digna de Mim". Como não a julgou digna e governava olhando para o umbigo, não a cumpriu. Naquela altura ele estava com 25 anos, idade em que muitos de nós ainda obedecemos a pais ou patrões. Mas ele era o imperador e quem mandava era ele. Mandou por mais oito anos, incendiou, atirou, perseguiu e no fim acabou enxotado para fora do Brasil que o havia eleito como seu "defensor perpétuo".
Nero também mandava, daí mandou incendiar Roma. Calígula mandava muito, daí nomeou o cavalo Incitatus senador e o propôs para o cargo de cônsul (não confundir com embaixador), a mais alta função da vida pública romana. Depois disso, qualquer nomeação passou a ser normal. E, no Brasil, imperador, presidente ou ditador pisotear, rasgar e tornar "digna de Mim" a Lei Maior da Nação virou mania.
PECs pecaminosas
Foi por causa do horror que os comportamentos indecentes da nobreza corrompida causavam à burguesia que os capitalistas optaram pela República, adoçada pelos princípios maiores de liberdade, igualdade e fraternidade - numa palavra, democracia. Só que nenhuma das quatro ainda deu completamente certo em dois séculos de domínio da nova ordem que derrotou o feudalismo na filosofia, na economia e na bala. "Mim", cinicamente, usa-as ao sabor dos melindres pessoais.
Toda vez que a vontade imperial é desobedecida pelos súditos das castas inferiores que as exigem, a liberdade é tolhida, a igualdade descartada, fraternidade vira polarização. Contra os princípios constitucionais, a democracia é atacada quando se pretende submeter as instituições a um poder unipessoal via MPs e PECs pecaminosas que derrubam leis.
Os militares legalistas são amados e fazem boa carreira por jurar e defender com honra as disposições indiscutíveis da Carta Magna. Governantes e parlamentares não podem ser empossados, mesmo já eleitos e diplomados, sem antes jurar que vão cumprir a Constituição.
Não cumpri-la significa desonra, comportamento corrupto ou criminoso. Ser contra não leva a prisão ou multa, embora seja atitude suspeita: como alguém decente pode ser contra a expressão mais perfeita e acabada do Estado, o encontro excelente da nação com a lei, a Constituição? Mas "Mim" manda e muda a lei sempre que incomodar alguém da família, do círculo de amigos ou sócios. Pouco importa se jurou cumprir a Carta e se os princípios a ser honrados com a própria vida, ao menos a pública, são legalidade, moralidade, publicidade, eficiência e... impessoalidade.
Um batalhão de perjuros
Desde a invenção da mágica de governar por Twitter, ignorar o palavrão mais importante da gestão democrática instituiu o perjúrio geral e descarado. A julgar pela imensidão de propostas de emendas constitucionais apresentadas por líderes que juraram cumprir a Carta Magna, o mundo político é insanavelmente perjuro. Mamãe ensinou a não dizer palavrões e passa a ser virtude para quase 100% dos líderes evitar o palavrão "impessoalidade".
"Mim"não vê que se a gestão não for impessoal já passa constitucionalissimamente a ser ilegal e imoral. E "publicidade" não quer dizer propaganda de "Mim", mas transparência dos atos governamentais, para que a ação administrativa favoreça a todos e não só aos parentes e amigos do rei.
Uma gestão com o rei Mim falando em si mesmo o tempo todo, inflando moeda e derrubando Bolsas, exibindo um comportamento administrativo pessoal e por isso mesmo ilegal e imoral, não terá como ser eficiente.
Não cumprir o quesito impessoalidade é anular o juramento feito entre a eleição e a posse. É uma autorrenúncia ao mandato por perjúrio explícito. A menos que se dê de barato que o Twitter e a robozada disparadora de zaps revogaram a Constituição.
Do superciclo à oclocracia
Entrou no radar dos grandes temores, com o rigor do clima e a falta de respeito entre pessoas, a impressão de que o populismo centennial quer matar a democracia liberal, dando fim ao capitalismo. O festivo superciclo das commodities e a maravilha do bônus demográfico deveriam ser a alavanca e o motor para arrancar o Brasil da pobreza, mas isso daí foi jogado fora desde a crise da ditadura, que começou em 1980 e se estende em reformas impostoras até agora.
E assim, neste Terceiro Milênio, ao se combinar com a incessante crise, as redes antissociais dos algoritmos perversos e dos robôs distópicos fizeram o populismo presidencialista à brasileira, ao contrário de retomar o fio da democracia liberal, resvalar perigosamente para a oclocracia.
Este, sim, é um palavrão que mamãe não gostaria que disséssemos e vai encher nossos netos de vergonha. A oclocracia é a gêmea má do poder popular, aquela que troca a lei e os caminhos democráticos da interdependência entre os poderes pelas tochas incendiárias e fumacentas: é o poder da turba insultuosa e cheia de rancor.
Quem ainda não ouviu palavrões na vida os ouvirá ao ver a oclocracia em movimento. Afrouxar aquela famosa eterna vigilância que seria o preço a pagar pela liberdade dá em descuido com a impessoalidade, virtude máxima do poder político democrático. Constitucionalissimamente tem jeito de palavrão, mas é um bom advérbio.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br