Imposto e reformas impostoras
Alceu A. Sperança
Encaminhada a tortura da Previdência, está aberta a nova temporada de aventuras: qual será o jeitinho com nome de "reforma" que o governo dará para cobrar ainda mais impostos em troca da bondade de não recriar a odiada CPMF?
Primeiro, falar pouco em "imposto", que significa "imposição". Tudo tem que parecer suave, patriótico e democrático. Depois, o discurso defenderá que um novo e mágico "tributo" ou "contribuição", palavras que sugerem exercícios de vontade como doar sangue ou ajudar a Apae, vai preencher o vazio da infraestrutura minguada e dar fim à pobreza.
Depois de meio milênio de "reformas", será mais um sacrifício vendido como "a única forma" de o país ter infra decente e povo rico. A Previdência já foi a "última forma" e a próxima "única forma" será o parlamentarismo. O Estado é uma imposição. Logo, é uma fonte de impostos.
Imposto, aliás, lembra impostura e "o impostor coloca os recursos da retórica a serviço de uma negação quase psicótica do real, sem nunca admitir que errou", escreveu Michel de Pracontal em A Impostura Científica em Dez Lições.
Impostura, dentre outras coisas, é falar de teorias das quais se tem uma vaga ideia, manipular frases sem sentido e fazer jogos de linguagem, detalham Alan D. Sokal, da New York University, e Jean Bricmont, da Université Catholique de Louvain (Bélgica), em Imposturas Intelectuais.
Vê-se muito disso no Brasil. Nega-se o desmatamento, a piora do clima, que houve ditadura, que a Terra é redonda. É negar e renegar o que não interessa à "ala ideológica". Nada de novo no front: o governo Lula-Dilma primeiro negou a crise do final da década de 2000, como já havia negado o Mensalão. Combinou-se que alegar ignorância e negar é a tática perfeita para a estratégia de pôr a culpa nos outros.
Desde 1889, uma enxurrada de reformas
No passar das décadas, quem apostou em reformas colheu sacrifícios. O desemprego batia às portas de milhares, quando diminuía era uma festa publicitária do governo e ao voltar piorado as soluções eram... reformas! A dívida monumental crescia furiosamente? Reformas! O Plano de Aceleração andava cada vez mais lento? Reformas! A produtividade é um vexame? Reformas!
A violência que tomava conta das cidades. A mortandade de jovens pobres descontrolada. O crescimento do poderoso Partido da Droga, cujas alas fazem eleições primárias sangrentas nas masmorras prisionais. A poluição urbana virando foco de doenças graves, com pulmões destroçados e diarreias misteriosas. A solução para tudo? Reformas!
A banalização do caos urbano e da devastação florestal completam um caldo de cultura para"reformas"incessantes cuja intenção real é maquiar a popularidade dos governantes. Mesmo no caos, o prestígio de Lula chegou a quase 100%, embalado por muita propaganda e pelo drible aos problemas com a ginga de corpo. Numa palavra, ideologia: quando falhar a conciliação de classes do superciclo das commodities basta asfixiar os discordantes com armas, bombas, cassetetes, tuítes e zaps.
Quando as "reformas"terão fim? A República iniciou em 1889 uma enxurrada reformista que durou um século. Em 1989 começou a atual saraivada de Medidas Provisórias, na qual reformar, ou seja, rasgar a Constituição, é o "novo". Mas com tanta reforma, por que o atraso continua e a economia se arrasta em recessão técnica? Na falta de respostas adequadas, sobram frases sem sentido, escatologia e rancores sexuais que desviam as atenções do principal: a crise afeta primeiro os pobres, os sem-lobby, que pagam a conta. Quando não podem mais pagar, sobra para a classe média.
As "soluções"até agora encontradas para combater a demorada crise fazem os ricos ainda mais ricos à custa dos impostos pagos pelos pobres. Quando estes fraquejam por exaustão, as "reformas"arregaçam o bolso da classe média achatada.
Perjúrio: jurar e não cumprir a Constituição
No Brasil e lá fora não há um só"pacote"propondo eliminar a pobreza e proteger a classe média: tudo socorre o sistemão. Salvam bancos, mas não as empresas que a crise gerada pelo sistema financeiro arruinou. Bancos socorridos são "eficientes e modernos". Empreendedores quebrados sem socorro são "incompetentes e atrasados"...
Seria justo socorrer os falidos se o socorro também alcançasse as pequenas cidades em dificuldades. Há décadas estão coladas no zero, sem recursos para a saúde qualificada e com cascas de ovo tapa-buracos mais finas nas ruas.
Olhando bem, no que resultaram as reformas desta década? A recapitalização do sistema financeiro pós-estouro de bolhas piorou a dívida dos pobres e diminuiu os recursos orçamentários para obras e serviços necessários, como a infraestrutura, a educação e a saúde.
Ficou mais caro o crédito para as pequenas empresas, instituições e projetos públicos. E aí o endividamento. De 5,6 mil municípios, cinco mil se precarizaram no limite para saldar velhos encargos, com menos recursos para financiar as necessidades da população e cortes drásticos nas políticas sociais.
Ora, a macroeconomia do deus-mercado não cuida dessas miudezas. Funciona melhor hipnotizar os incautos com a "ideologia"algorítmica do insulto, recorrer ao perjúrio vergonhoso de jurar e não cumprir a Constituição e fazer "reformas"sem parar, mesmo não melhorando de fato a vida do povo. Reforme-se, future-se, polarize-se, quebre-se o cacete, porque a capitalização vem aí e a reforma tributária começou seu ruidoso festival de imposturas.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br