Não ligue: todos somos hackeados
Alceu A. Sperança
Tempos terríveis, de governos incapazes de proteger os cidadãos e corporações hipercompetentes em paranoiar a classe média. Antes dos atentados às torres gêmeas as leis não autorizavam o governo a espionar a vida dos cidadãos. Agora, a pretexto de combater o terror, o populismo boquirroto pratica às escâncaras o que já se fazia na sombra.
Pelo menos desde a revelação de que o governo estadunidense mentia para seu próprio povo, nos Pentagon Papers, ninguém mais se sente chocado com revelações provindas de ataques criminosos a segredos de Estado, empresas ou pessoas. A interceptação só pega mal quando não descobre nada monstruoso.
O argumento de que é preciso cercar os terroristas e os criminosos antes que ataquem facilita a aceitação: se a violação da lei der na apuração de um crime considerado maior, ela é justificável. Violar sigilos, trapacear as balanças da Justiça e usar fontes criminosas para informar fica banal.
Espionar um cidadão é imoral, mas se em filmagem clandestina ele for apanhado matando a sogra, quem vai crucificar o espião? Quem sem respaldo legal vigia corruptos vira herói ao expor a corrupção à luz. Só que continuar com isso não dá em boa coisa. Tolerar abusos é autorizá-los. Milícias crescem assim.
Espionar e não ser apanhado, eis a questão. Se a tecnologia de gambiarra que espionou Moro, Deltan e mais mil estava impune, fácil supor que agentes da arapongagem pública possuem armas de destruição de reputações em massa custeadas pelo próprio povo espionado. Na antiga URSS, cada país desmontou sua KGB, mas será que todos os demitidos foram para casa dormir sob a proteção dos anjinhos?
Estados mínimos que demitem servidores antes ocupados com espionagem criam a tentação do"empreendedurismo?: continuar espionando e vazar o que der lucro para seitas, credos, oposições e empresas. Diga-me quem tem meios para espionar e te direi quem faz bons negócios. Arranjam empregos na espionagem industrial ou se põem a serviço de insurgências e da indústria armamentista.
A eleição de líderes improváveis não é um fenômeno ocasional. Valores estuporados forjam maiorias antes impossíveis. Um quarto a um terço de aprovação em primeiro turno induzido por fake news, disparadores pagos em caixa 3 e ofensas a adversários dá em boa bancada parlamentar e 50% ou mais votos em segundo turno quando os robôs ajudam a capturar os indiferentes, omissos e indecisos.
Mr. Algoritmo é um amigo que nunca nos ofende na rede social e arregaça o mundo a um clique. Manipulando a combinação de dados que fornecemos a cada instante para uma rede de robôs prontos a se servir de nossas inconfidências, bebedeiras e likes, é esperto a ponto de adivinhar coisas que ainda vamos desejar.
O recente documentário"Privacidade Hackeada?, de Jehane Noujaim e Karim Amer, abre uma fresta de luz sobre a facilidade com que humanos se deixam dominar por robôs, correndo o risco de matar a democracia e instaurar uma"zaptuitocracia".
Para espairecer, que tal o desafio de assistir unicamente ao primeiro episódio de uma série? Bombardeado por truques que induzem a ver todos os próximos e as temporadas seguintes, não vai cansar até um dia resolver o mistério da delegada grávida na Casa de Papel. Se liga, meu: conectou, abriu a guarda.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br