Filhos enjoadinhos, por que tê-los?
Alceu A. Sperança
Só quem não tem filhos pode julgá-los neutros. Quem os tem, sempre vive situações fora de controle. O general-presidente Médici controlou dois, mas em sua época não havia o Twitter. Presidente que certa vez associou "aborrecimentos" a "filhos", Jânio Quadros só teve uma filha - Dirce, a Tutu - e passou à história mais pela fraquejada da renúncia que pela qualidade de seu governo, sem dissabores com Tutu.
Vinicius de Moraes e seu Poema Enjoadinho são eventualmente lembrados quando surgem os inevitáveis problemas com filhos: sem tê-los, "como sabê-los?" Para saber, reza antiga parábola, um pai distribuiu aos três filhos igual quantidade de sementes. Ao cabo de certo tempo cobrou o que haviam feito com a dádiva: o primeiro as guardou em cofre e secaram; o segundo as vendeu e comprou novas quando foi chamado a devolvê-las ao pai; o terceiro plantou e colheu uma boa safra. O rei viu com satisfação que o "zero-três" deu conta do recado, mas outros monarcas não tiveram tanta sorte.
Sem aborrecimentos criados pela prole, o imperador Pedro II desenvolvia décadas de um Estado estável, com uma alternância que lembra o Chile: a centro-direita entrega o governo à centro-esquerda e depois o recebe de volta, círculo feito virtuoso pela conveniência. Os historiadores não alinham filhos entre as causas da deposição de Pedro II, mas a tristeza que caracterizava o monarca e é atribuída ao casamento bem jovem, por razões de Estado e com uma princesa não exatamente bela nem amada, decorreu de duas decepções seguidas com os filhos zero-um e zero-dois.
Afonso, o primogênito e herdeiro do trono, morreu com dois anos, em 1847, de epilepsia. Pedro II queria que o sucessor no trono fosse um filho homem, mas aconteceram duas "fraquejadas": nasceram as filhas Isabel, que depois libertaria os escravos, e Leopoldina. Em última tentativa, em 1848 nasce a nova esperança nobre: Pedro Afonso. Ao completar um ano, porém, o bebê príncipe sofreu uma febre fatal.
O trono ficaria para a princesa Isabel, mas o pai já supunha que os políticos escravocratas a consideravam fraca, fanaticamente religiosa e jamais a aceitariam. Em fevereiro de 1885, a princesa inaugurou a Estrada de Ferro do Paraná já em meio aos boatos de que o doente e desalentado imperador estaria abandonando a política e entregando o poder a Isabel. Para a Câmara de São Borja (RS), era uma fraquejada imperdoável. Os camaristas exigiam um plebiscito sobre a República por julgar a princesa Isabel "uma mulher obcecada com uma educação jesuítica e casada com um príncipe estrangeiro", o francês Luís Filipe Gastão d?Orléans, o Conde d?Eu.
A princesa Isabel poderia ter sido a grande monarca de um país livre e estável? Talvez, mas sucumbiu com a deposição do pai, em 1889. Um ano depois, se vale comparar, subia ao trono da Holanda a rainha Guilhermina, aos dez anos de idade. Governou tão bem e com firmeza no curso das duas guerras que os pais, o rei Guilherme III e a princesa regente Adelaide Ema, poderiam se orgulhar da "fraquejada" ao tê-la.
O Brasil, por seus filhos amado, começou quando o infeliz rei luso João II perdeu seu zero-um, o príncipe Afonso, de tenros 16 anos, que caiu de um cavalo em 1491. Acossado pela lei acima de tudo e os costumes acima de todos, o rei fez o que pôde para tornar o zero-dois, o filho bastardo Jorge de Lencastre, nascido em 1481, como o legítimo herdeiro do trono.
Em trama digna de Agatha Christie, o sobrinho que por lei e tradição assumiria trono foi assassinado a mando do rei. No total, cinco sobrinhos eliminados em sequência, exilados ou mortos, alguns misteriosamente. Acabou se afeiçoando ao último sobrinho, também seu cunhado, Manuel. Que isolou o filho zero-dois do rei, assumiu o trono e ordenou a descoberta do Brasil, a mãe gentil dos filhos deste solo.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br