Produzir bebida alcoólica dá lucro. Leite? Dá prejuízo
Alceu A. Sperança
Os produtores de leite no Brasil estão sempre à beira de um ataque de nervos. A coisa vai mal. Mas há produtores de bebidas felizes da vida: com a crise, o pessoal deu para entornar até a última gota de uísque e assim, além dos males do fígado, alimentar a poderosa indústria do alcoolismo.
"Mundo, vasto mundo", dizia Drummond, mais em busca de uma solução que de rimas. Mundo, injusto mundo: quem produz leite beira a falência, quem produz a cirrose engarrafada enriquece cada vez mais. Logo no início da última crise, em 2009 (outra é esperada em 2019), a escocesa Macallan Distillery iniciou a construção de quatro obras simultâneas. Quatro edifícios enfeixados num projeto de US$ 80 milhões, três deles grandes depósitos para guardar mais de 100 mil barris de uísque.
A empresa já era grande e seus produtos recebiam encomendas de todo o mundo, mas o consumo disparou e o investimento foi aplicado para ampliar a produção. "Não podemos atender a demanda do jeito que estamos indo, especialmente na Índia e China", dizia o gerente da destilaria, Alexander Tweedie. Na China e na Índia as pessoas estão ganhando mais dinheiro e incorporando a seus costumes os meios ocidentais de se estressar. Cabeça arruinada pela competição desumana, toma uns goles e segura as pontas até o dia seguinte.
Assim, a decadente indústria do uísque escocês, que estava em baixa, com a crise deu um salto espantoso. As vendas subiram 75% na China; 36% na Índia; 27% na Europa; e 6% na América do Norte. Enquanto isso, no Brasil, em 2013 o valor pago pelo litro de leite chegou a cair 30% nas negociações entre produtores e comerciantes, mas é claro que você não sentiu toda essa queda de preços ao comprar o leitinho das crianças... Não esquecer que em 2013 se acendeu a faísca atrasada da crise mundial: a marolinha virou um porre.
Para esquecer o leite derramado, que venha o uísque nosso de cada gole. O Brasil foi o país com maior aumento nas compras das garrafas oriundas das tradicionais destilarias do Reino Unido, segundo a Scotch Whisky Association. Houve um crescimento substancial de 49% no primeiro semestre de 2013.
Somos o quarto país que mais compra uísque escocês, ficando atrás somente de França, Estados Unidos e Cingapura. A educação vai caindo pelas tabelas, mas o consumo de uísque no Brasil cresceu mais de 70% desde 2008 e movimenta cerca de R$ 2 bilhões, de acordo com pesquisa da SWA. Talvez não seja por beber tanto que vamos mal em educação, mas pode ter algo a ver com estarmos despencando no ranking da sensação de felicidade.
Na Antiguidade, no Egito, Israel e Grécia, por exemplo, a embriaguez não foi essa coisa burra e doentia de hoje, "pois era vista como um ato religioso, como uma aproximação com os deuses", segundo Tabajara Ruas em Netto perde a sua alma. E onde o uísque não entra, que venha ela, a santa cachaça de cada dia. No altar da solidariedade, que tal erguer brinde aos nossos estressados leiteiros? (Imagem: do livro A Maldição Brasileira, Projeto Livrai-Nos!)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br