Queijo lunar, planeta Brasil e teorias da conspiração
Alceu A. Sperança
Enquanto não aparecer uma nova teoria da conspiração sugerindo que o plantio de algodão na Lua foi tramado num "Arizona" asiático, a presença da sonda chinesa Chang?e-4 no lado escuro do ainda misterioso satélite natural da Terra constará como um novo e importante feito espacial da humanidade. Uma glória ainda tímida frente ao que representou a gênese da agricultura para a civilização humana: fixou o nômade à terra, obrigou-o a criar a educação e a ciência, foi mais que o Vale do Silício de sua época.
Públio Catão diria hoje que os jovens mergulhados na mais avançada tecnologia são gênios que merecem riqueza a cada inovação, mas em 200 a.C. ele escrevia: "O maior louvor que se pode fazer a um homem é apresentá-lo como um bom agricultor". Os cotonicultores brasileiros merecem tal louvor, até por exportar aos chineses o produto que tentam desenvolver experimentalmente na Lua. Não oculta nem eclipsada por essa importante conquista, é visível a aposta chinesa: para suprir suas necessidades, joga mais na cotonicultura brasileira que nos campos lunares.
Ainda é impossível calcular quais serão as consequências do algodão plantado na Lua para o futuro da espécie humana, mas um olhar ao passado atesta que a maciez do algodão oculta um núcleo duro capaz de dispensar gastos bélicos. Assim se deu na ocupação de um enorme território embutido no Brasil. Em "The Hungry Empire: How Britain?s Quest for Food Shaped the Modern World" ("O Império faminto: como a busca britânica por alimentos moldou o mundo moderno"), Lizzie Collingham demonstra com sobra de dados a importância do agro para a afirmação global do domínio inglês.
No Paraná imperial, então parte de São Paulo, os ingleses já operavam sob d. Pedro II. Fundaram a indústria regional, produzindo perfumes com... laranjas. Com a República e os militares revoltados, assustaram-se ao sofrer a ocupação de Foz do Iguaçu pelos rebeldes tenentistas, em 1924, mas trataram de se garantir junto ao governo uma vasta área de terras à margem esquerda do Paranapanema, entre os rios Tibagi e Ivaí.
Foi quando a Missão Montagu veio ao Brasil para monitorar (sempre ela!) nossa volumosa dívida, naquele mesmo 1924. Um dos membros do grupo, Lorde Lovat, foi ao Paraná. Impressionado, viu extensas plantações de café e manifestou interesse em obter muitas terras para um projeto de cotonicultura. Durante um jogo de bilhar, abriram diante dele o mata da mina: um traçado mostrando que era fácil ganhar terras do tamanho de nações europeias apresentando projetos ferroviários.
Os ingleses formam com sócios locais a empresa Parana Plantations Syndicate Ltde numa tacada de mestre, criam a subsidiária Companhia de Terras Norte do Paraná. As atividades com o algodão ficam de lado: adquirem o controle da Companhia Ferroviária São Paulo-Paraná e saem a plantar cidades. Donos de um imenso latifúndio com o tamanho da Suíça, darão origem assim a Londrina (afilhada de Londres, of course!), Maringá e outras dezenas de cidades paranaenses. É um clássico domínio territorial.
Não se sabe se a China também pretende possuir tantas terras para plantar algodão no Brasil ou explorar algo mais com elas, mas está sob a suspeita presidencial de que pretende, como já fizeram britânicos e estadunidenses de formas diversas, não só "comprar no Brasil mas também comprar o Brasil". Desconfiança que desta vez não decorre do paranoico "marxismo cultural": explica-se pela estratégia chinesa de adquirir terras mundo afora, com aquisições aqui, na Argentina, Chile, Moçambique, Nigéria, Zimbábue, Camboja e Laos, entre outros países. Algo ao redor de dez milhões de hectares desde 2012 - e a versátil fibra branca está entre as prioridades orientais.
Foi exatamente em 2012 que o grupo chinês Shandong Ruyi comprou a maior plantação de algodão da Austrália. Com a suavidade da pluma do algodão vem a firmeza de seu caroço e a ocupação do solo na qual o produto vinga. No lado escuro da Lua ainda não vingou, mas na Terra o algodoal chinês, por produção ou aquisição, vai cobrindo áreas enormes e crescentes. Nos últimos dez anos, suas compras do algodão brasileiro pularam de 3% para 28% do volume total. O planeta Brasil é mais saboroso que o queijo lunar.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br