Arrependei-vos!
Alceu A. Sperança
Estudar religião pode fornecer boas pistas sobre as coisas terrenas. No momento mais decisivo da vida de Buda, o Senhor da Luxúria alinhou suas três belas filhas tentadoramente diante do príncipe Sidarta. Seus nomes eram Desejo (Passado), Satisfação (Presente) e Arrependimento (Futuro) - cada uma representando uma fase do transcorrer da vida no tempo. As três filhas são onipresentes nos ambientes políticos, mas a terceira, agarrada às outras, diverte-se com as consequências das más escolhas feitas ao sabor das ilusões, da propaganda e, mais recentemente, da profusão de fake news nas redes sociais.
Fernando Collor, na campanha presidencial de 1989, acusou Lula de pretender tomar o dinheiro das viúvas. Venceu e ao assumir ele próprio aplicou o que antes condenava. Depois foi a vez de Lula da Silva trair a militância com a "Carta aos Brasileiros". Dilma Rousseff praticou o estelionato eletivo da vaca neoliberal tossindo no diapasão da Escola de Chicago, com Joaquim Levy, ora adaptado ao bolsonarismo.
Líderes que iludiram seguidores causando decepções e arrependimentos não faltam, mas a traição que dói mais é a recente ou aquela de que somos vítimas. Sobra a reconfortante sensação de que falhar em escolhas eleitorais diz mais a respeito do caráter de quem induziu ao erro que sobre a integridade dos arrependidos. Arrepender-se, de resto, é uma virtude exaltada pela nova ciência (experimentar é errar muito) e a velha religião (arrependei-vos!).
É decente e honesto se arrepender pelos erros cometidos. No passado, líderes importantes e sinceros também viveram para expor sua autocrítica, prática hoje em baixa e descartada pela maioria dos próceres brasileiros. No processo de ruptura que levou da monarquia à República, por exemplo, o arrependimento grassou francamente entre nobres e plebeus.
Conta Laurentino Gomes em 1889 que o chefe do governo brasileiro, Visconde de Ouro Preto, mal aconselhado pelo ministro da Guerra, Rufino Galvão, cometeu o erro fatal de transferir o governo do Arsenal da Marinha, onde teria proteção e fidelidade, para o Quartel-General do Exército, situado no Campo de Santana, justamente o ponto de convergência das tropas rebeldes.
O arrependimento do derrotado Ouro Preto pelo erro a que foi induzido não doeu menos que as autocríticas de dois vencedores de alto coturno. Corta o coração, acima de tudo, a amargura de Benjamin Constant, um dos artífices da República. Responsável por insuflar os cadetes à rebelião, ele manifestava, já em 15 de novembro de 1890, no primeiro aniversário da República, sua terrível frustração: "Um ano! Um ano! E em que estado estou!" Alguns dias depois, estaria morto.
Ruy Barbosa, defenestrado do Ministério da Fazenda do Marechal Deodoro e jurado de morte, ao se encontrar em Paris com o imperador destronado d. Pedro II, disse-lhe, em 1891: "Majestade, me perdoe, eu não sabia que a República era isso". Mesmo hoje, muitos ainda não sabem. Quem já se arrependeu por ter votado neste ou naquele governante ou parlamentar que não correspondeu às expectativas não precisa se estressar: antes, muita gente sábia e capaz também se arrependeu por avaliações equivocadas. Desde Buda já se sabia que Arrependimento é coisa que vem depois de Desejo e Satisfação. (Texto também publicado no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br