'Ewald, um alemão' evoca o Oeste pré-globalização
Alceu A. Sperança
O mundo em que transcorreu nossa infância - cenário de uma estúpida guerra fria entre potências hegemônicas - teve no Oeste do Paraná o contraponto inovador de uma sociedade ainda em formação. Quem chegava, saía de uma realidade difícil no Sul e pretendia construir algo novo, rico e promissor, pagando o preço de começar do nada.
Ter vivido a infância naquele período e narrá-la hoje é correr o risco de enfrentar o espanto dos jovens e a descrença dos netos. Em seu livro Ewald, um alemão, Luiz Carlos Schroeder recria a memória de uma espécie de "Macondo" situada no Oeste do Paraná - a cidade de Cristo Rei - que se construiu entre o pós II-Guerra e a explosão das commodities.
Em meio aos pioneiros que a construíam, com as crianças que nasciam e cresciam, destaca-se um "piá", como os nativos chamam os meninos, filho de uma tradicional família de mestres cervejeiros que ousa levitar, encher a todos de perguntas e prever o futuro.
Na família de descendentes de imigrantes em que os pais não ensinam mais o idioma ancestral - ter sotaque e parecer diferente ainda (e até quando?) atrai preconceito -, o menino se concentra no caráter forte do pai, um empreendedor que alia o amor à família a um espírito aventureiro.
Isto o faz um cidadão de personalidade única, fruto da tarefa diária de percorrer grandes espaços rurais em direção a grandes cidades, das quais trará seus produtos e novidades ao remoto interior. O copo de cerveja na capa de Ewald, um alemão fotografa um cidadão orgulhoso encostado em seu caminhão.
Pelas páginas do livro, escrito com primor, assiste-se aos dribles e contorcionismos de um menino arguto às voltas com os problemas, maravilhas e novidades do crescimento. Em busca de respostas que encontrará só em parte entre os sábios conselhos e castigos homéricos do pai, para tudo o mais tendo que observar a realidade ao seu redor e fora de casa, assiste ao destilar da proverbial fibra dos imigrantes vivendo o caldo de cultura em que os filhos de imigrantes crescem.
Lembrando o onipresente domínio das tradições religiosas, dos costumes rígidos e da moral relaxada pela música, a comida farta e as bebidas em profusão, quem viveu aquela época reconhece, ao ler, as próprias experiências em paisagens rurais amplas e múltiplas que dominavam tudo. Porque nos aglomerados urbanos minguados todos se conhecem e se encontram ao sair para as tarefas do dia a dia, prestando serviços na cidade ou logo se metendo pelas empoeiradas estradas do interior.
É uma infância em que o passado desaparece rapidamente. Nada que vem com o boom agrícola vai lembrar mais a vida rurbana dos anos 1950 e 1960. As décadas de 1970 e 1980 são para o Oeste do Paraná o que o atual final de década é para o mundo - mudanças estruturais enormes, com dramáticos efeitos políticos. A globalização trazida lá atrás pelas culturas de exportação é confrontada por um nacionalismo populista cheio de preconceitos, rancores e incertezas.
Realidade chocante, a parte que nos cabe neste latifúndio, é também vivida pelos britânicos em seu traumático Brexit, pelos estadunidenses com el rey Trump I, a guerra comercial EUA-China - a farsa da história que se repete depois da tragédia - e a ordem liberal em xeque no mundo todo.
Nesta hora, mergulhar nas memórias e divagações de um menino sobre a vida, obra e aventuras de Ewald, um alemão funciona como um acerto de contas entre nossa própria infância e o espantoso mundo que assistimos se desenrolando à nossa frente.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br