90 anos entre um tiro e uma facada
Alceu A. Sperança
Sob a comoção geral causada pelo esfaqueamento do então candidato favorito à Presidência, Jair Bolsonaro, o Brasil de 2018 por um breve momento se uniu contra a loucura causada pela polarização irracional, baixos instintos que sufocam a política, arte superior das relações humanas. Nove décadas antes dessa facada, em 1928, um amor transformado em ódio alcançou um presidente em pleno exercício do cargo.
Até ser baleado, Washington Luís Pereira de Sousa produziu um currículo simplesmente espetacular. Fluminense, formado em Direito em São Paulo, despontou como intendente (prefeito) de Batatais (SP) ao promover uma pioneira experiência de Reforma Agrária.
Como secretário da Segurança de São Paulo, criou a base da Polícia Militar. Era a "polícia sem política": não aceitava ingerências externas nas nomeações de delegados. Deu início ao sistema penitenciário paulista e às ações de inteligência no país. Seu lema era "Não prender sem motivo". Prefeito de São Paulo em 1914, enfrentou a Primeira Guerra Mundial e a mãe de todas as greves brasileiras, em 1917, mais a Gripe Espanhola no ano seguinte, assumindo o governo de São Paulo em 1920.
Amante do automobilismo e obcecado pela construção de estradas (governar seria construí-las), era odiado pelas elites conservadoras por... construir estradas! Intelectual progressista, viu-se fustigado pelos inimigos que o chamavam de "General Estrada de Bobagem", trocadilho com "Estrada de Rodagem". Em sua defesa veio outro intelectual: Monteiro Lobato atribuía o desenvolvimento dos EUA à sua enorme rede rodoviária. Assim fortalecido, Washington Luís foi o presidente que iniciou a BR-277, em 1927. Depois dele, a obra foi várias vezes interrompida e só se completou em 1969.
Feito extraordinário jamais igualado, WL em 1º de março de 1926 se elege com o maior percentual de votos obtido por um candidato à presidência: 99,86% dos sufrágios, contra o general Assis Brasil. Atacado pela elite mais conservadora, também não escapou de ser difamado entre os trabalhadores por sua história na repressão policial no governo paulista, quando lhe foi atribuído o lema "Questão social é questão de polícia", que hoje parece estar de volta à cena.
Aí o inesperado acontece: é baleado no Hotel Copacabana Palace. Era o dia 23 de maio de 1928. O atentado foi cometido pela amante, a marquesa italiana Elvira Vishi Maurich, 28. A versão oficial era de que o presidente foi internado com apendicite. Horas depois a marquesa foi achada morta, supostamente por suicídio. Um amor que virou ódio liquidava a mais luminosa história de um homem na Presidência da República.
O que veio depois completa a tragédia pessoal: em outubro de 1930 é derrubado da Presidência por um golpe militar. É preso e vive o exílio nos EUA e Europa, regressando com a redemocratização, em 1947, mas já sem qualquer ação política. Tudo o que um brasileiro poderia fazer nela ele já havia feito. Morreu dez anos depois.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br