Nova ordem sem velhos erros
Alceu A. Sperança
Era uma vez? Não: é uma vez uma República em que os vices-presidentes raramente se mantêm inermes ou anódinos. Em geral, têm outros planos, são assediados por alas divergentes e namoram com oposições. Desde o encilhamento, em raríssimos casos deixaram de ter um cavalo encilhado para montar. Os arreios aparecem com o fim da lua de mel do titular com os eleitores.
Os embates mais tensos entre presidente e vice ocorrem quando se trata de dois empoderados, como se diz em certas academias. No caso da República brasileira, não demorou. Em fevereiro de 1891 os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto (foto) são eleitos presidente e vice pelo Congresso Constituinte, mas alguns dias depois grupos a favor e contra cada um deles já se engalfinhavam.
A República não teve bom parto. Surgiu da contradição entre o velho que tenta se renovar e o novo que envelhece ao se trair. O velho imperador se rendia, hesitante, à abolição da escravatura, que deixou para a filha Isabel assinar. Seus opositores, adeptos do novo, para vencer Pedro II se aliaram aos conservadores. Paradoxos para os quais qualquer semelhança com o lulismo não é mera coincidência.
A monarquia morreu quando tentava ajeitar as maçãs na caixa e a República nasceu quebrando a caixa. Não há registros de que dentre os ideólogos antimonarquistas do século XIX algum imaginasse que a jovem República, anseio dos mais avançados pensadores brasileiros, cairia no presidencialismo monárquico e absolutista dos marechais.
Sem articulação para resolver os conflitos internos, fustigado pelas oposições interna e externa, Deodoro descobriu a pólvora: acusar a imprensa pelos males do país e, por conta disso, instituir a censura à circulação de informações. Calar a imprensa não calou a crise econômica, aprofundou a crise política e nove meses depois de assumir a Presidência o arauto da República desabava com a imagem arruinada, para morrer menos de um ano depois. Foi assim que pela primeira vez na história deste país um vice assumiu a Presidência: o marechal Floriano Peixoto.
Idealistas como o criador da bandeira do Paraná, Manoel Correia de Freitas, sonhavam a via republicana como a antessala do socialismo. Nos manuais de autoajuda os sonhos sempre se realizam, mas em política e economia viver é melhor que sonhar, como cantava Belchior. Os sonhos dos revolucionários tenentistas deram nos pesadelos do Estado Novo de Vargas. Civis e militares confiaram que abril de 1964 trazia uma "revolução democrática". Aí sobreveio o pesadelo do AI-5 e mãe de todas as crises recentes, em 1980. A cornucópia de direitos da Constituição Cidadã de Ulysses e a social-democracia de FHC deram em neoliberalismo. O PT ético e sonhador da primeira prisão de Lula acabou no pesadelo corrupto da segunda prisão.
Nos processos de mudanças há muito sonho e pouca previsibilidade. Algo já ensinado desde a época em que o Brasil foi achado, "não há nada mais difícil de realizar nem mais perigoso de controlar", escreveu Maquiavel, "do que o início de uma nova ordem de coisas". O mestre florentino ensinou também que na passagem entre ciclos históricos é constante a tentação de cometer os mesmos erros antigos. Na hora em que o Brasil inicia uma "nova ordem de coisas", um olhar ao passado com filtro democrático pode ajudar a evitar ao menos as velhas trapalhadas. (Artigo publicado também no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro)
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br