O Ministério da Doença
Francisco Balestrin e Luiz Felipe Costamilan
O Congresso Mundial de Hospitais de 2013 teve sede em Oslo, na Noruega. Durante a cerimônia de abertura, no palco, entre autoridades internacionais do setor de saúde, levantou-se o então ministro da Saúde norueguês, Jonas Gahr Store, um tanto encabulado, para fazer a sua saudação. No seu discurso, agradeceu o convite, disse que se sentiu honrado e prestigiado, mas não entendia exatamente o motivo de estar ali. Afinal, era somente o ministro da Saúde e, assim, responsável por uma parcela absolutamente minoritária da saúde da população.
Na Noruega, eles entenderam que quem efetivamente cuida da saúde da população é o Ministério da Educação, quando ensina hábitos de higiene, alimentação e educação física às crianças ainda em idade escolar; o Ministério dos Transportes, quando garante condições seguras de trânsito; o Ministério da Justiça, quando assegura que os cidadãos não sofrerão violência; o Ministério da Fazenda, quando cria as condições para que os cidadãos possam sustentar a si próprios e à sua família com dignidade. Mais do que todos eles, porém, são as famílias, as igrejas, as escolas, os vizinhos e as comunidades saudáveis que criam cidadãos saudáveis.
No Brasil, a visão é absolutamente ao revés. Concentramos todas as nossas demandas, os esforços e anseios não na saúde, mas na doença. As manchetes com frequência refletem a aterradora situação da atenção à saúde no País: filas constantes, falta de leitos, falta de profissionais, estrutura deficiente, medicamentos e equipamentos escassos. Nossas mazelas, todavia, começam muito antes da porta de um hospital.
Focar na fila do hospital é como se, num navio que teve o casco perfurado por um iceberg, focássemos no tamanho do balde que estamos usando para drenar a água ou na técnica que o marinheiro usa para retirá-la. E é verdade - o balde é pequeno e o marinheiro, despreparado -, mas nada disso significa que o problema real não seja a gigantesca abertura no casco.
Não é coincidência que, na campanha eleitoral, as filas nos hospitais brasileiros tenham sido tema central de promessas de políticos oportunistas. Hospitais são peças fundamentais para o sistema de saúde e, idealmente, seriam um elemento de racionalização e coordenação do sistema, mas se não estiverem integrados num modelo de assistência voltado para a saúde são simplesmente imensos monumentos à doença. Em qualquer hipótese, hospitais não são - e não devem ser - o alfa e o ômega do sistema de saúde.
Numa perspectiva de modelo assistencial, esse papel cabe à atenção primária - a profissionais como o médico de família e uma equipe multiprofissional, incluindo enfermeiros e agentes comunitários de saúde, que devem ser capazes de orientar os cidadãos, ao longo do sistema, em jornadas de saúde efetivas e eficazes. É na atenção primária que efetivamente se produzem os melhores resultados para a saúde da população. Melhor do que cuidar bem de quem está doente é cuidar para que o cidadão não adoeça.
O artigo 196 da Constituição federal começa dizendo que "a saúde é direito de todos e dever do Estado". A inegável conquista da sociedade brasileira em termos da universalidade de acesso, no entanto, tem sido muito mal aplicada. Nós, como sociedade, temos exigido a aplicação desse artigo de forma que o Estado deve dar tudo a todos os que ficam doentes. Talvez num esforço para aplacar nossa própria consciência, temo-nos recusado a fazer escolhas racionais em questões de saúde. Infelizmente, não há - e nunca haverá - recursos para tudo. As escolhas, naturalmente, se dão de qualquer maneira, mas em vez de se usarem critérios de efetividade e racionalidade no uso, elas são feitas com base em lobby, pressão política e em inúmeras decisões de juízes em casos individuais.
Essa visão claramente não tem produzido bons resultados, como o demonstram a queda da cobertura vacinal e os recentes surtos de doenças como sarampo e febre amarela, além de epidemias de sífilis e obesidade - cuja prevenção completa não demandaria um único leito hospitalar. Talvez seja o momento de revermos essa interpretação e começarmos a exigir não o impossível - retirar com um balde toda a água do navio afundando -, mas o necessário, que é começar a reparar o dano no casco.
Os problemas não se limitam ao setor público. A mesma desvirtuação de modelo se verifica na saúde suplementar. E fica bem claro que a falta de recursos não é o único problema da saúde brasileira. Mesmo com mais recursos do que o setor público, para atender menos de um quarto das pessoas, a situação é insustentável. Existem filas até nos prontos-socorros com piso de mármore e o número sempre crescente de exames, procedimentos e cirurgias não tem, necessariamente, significado e garantido saúde melhor para seus beneficiários.
Cada elo do complexo produtivo da saúde tem os seus culpados favoritos. Governo, agências reguladoras, operadoras, médicos, hospitais, laboratórios, indústria - às vezes até os pacientes, que insistem em ficar doentes - são alternadamente apontados como os verdadeiros vilões do sistema. Mas talvez não sejam os vilões os que estão pervertendo um bom sistema, talvez o problema seja que maus sistemas necessariamente produzem vilões.
Na verdade, cuidar da saúde leva tempo, planejamento, cuidado, atenção. Exige ainda que se tenha visão de longo prazo - o adolescente que aprende hoje sobre saúde sexual pode evitar uma infecção daqui a 20 anos. Em outubro de 2013, pouco depois daquele discurso, o ministro da Saúde na Noruega mudou. Jonas Gahr Store foi substituído por Bent Hoie, que está até hoje no cargo. No mesmo período, por aqui, o nosso "Ministério da Doença" teve seis ocupantes.
Já passou da hora de mudarmos a forma de pensar. Merecemos, nós também, um Ministério da Saúde.
Francisco Balestrin e Luiz Felipe Costamilan são, respectivamente, presidente da International Hospital Federation e Diretor Executivo do Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde