O esbulho da lei
Editorial Estadão
Numa República, todos estão submetidos à lei, porque é perante ela que todos são iguais. Trata-se de um princípio basilar, que fundamenta toda a ordem política e jurídica. No entanto, tem havido casos em que juízes atuam como se estivessem numa esfera própria, imune aos efeitos da lei. É o que vem ocorrendo na tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 5.874, a respeito do decreto presidencial que concedeu, em dezembro de 2017, indulto natalino e comutação de penas a condenados.
O indulto está suspenso desde o ano passado por força de uma liminar da ministra Cármen Lúcia, que depois foi substituída por outra liminar do ministro Luís Roberto Barroso. No dia 29 de novembro, o caso foi a julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião formou-se maioria favorável à constitucionalidade do decreto do presidente Michel Temer. O julgamento, no entanto, foi suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux.
Uma vez que a maioria dos ministros votou em sentido contrário à decisão liminar do ministro Barroso, que suspendeu parte dos efeitos do indulto, o ministro Gilmar Mendes apresentou questão de ordem postulando que a liminar fosse cassada de imediato. Não fazia sentido manter uma decisão monocrática que afrontava o voto de seis ministros. No entanto, a suspensão da liminar também não foi definitivamente analisada. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, pediu vista da questão de ordem - o que vinha desobstruir o andamento do processo foi ele mesmo objeto de obstrução.
Por força de dois pedidos de vista, o julgamento da Adin está suspenso, ficando o processo numa situação peculiar. A voz de um único ministro do STF prevalece sobre a competência constitucional do presidente da República e o voto de seis ministros do Supremo.
No entanto, ainda mais estranho que o resultado da sessão do dia 29 é o fato de que os ministros Toffoli e Fux ainda não devolveram o processo para julgamento, em clara afronta às normas que regem o trabalho dos juízes. "Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente", diz o art. 134 do Regimento Interno do STF. Transcorreram mais de duas sessões e os dois ministros não apresentaram os casos.
Por ser guardião da Constituição e órgão máximo da estrutura hierárquica do Poder Judiciário, o STF tem especial dever de zelar pela legalidade. No entanto, a tramitação da Adin 5.874 no Supremo tem se caracterizado justamente pela submissão do ordenamento jurídico a vontades particulares de ministros do STF.
A Constituição assegura ao presidente da República a competência de "conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei" (art. 84, XII). Trata-se de competência exclusiva, isto é, reservada unicamente ao chefe do Executivo federal. No entanto, o ministro Luís Roberto Barroso serviu-se da Adin 5.874 para editar, por meio de decisão monocrática, um novo indulto, com novas regras e critérios. Agora, tendo formada maioria para restituir a competência do presidente da República, dois pedidos de vista - com prazos de devolução vencidos - obstruem a aplicação da Constituição.
Todos, incluídos os juízes, devem obediência à lei. Por isso, o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) estabeleceu que "qualquer parte, o Ministério Público ou a Defensoria Pública poderá representar ao corregedor do Tribunal ou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra juiz ou relator que injustificadamente exceder os prazos previstos em lei, regulamento ou regimento interno". Fica patente, portanto, que os prazos do Regulamento Interno do STF não são meras sugestões. Eles obrigam os ministros. Quando a lei é desobedecida, o exercício da magistratura, em vez de servir para aplicar e restabelecer o Direito, transforma-se em arbítrio, com voluntarismos e personalismos a prevalecer sobre a ordem jurídica. Pior quando o presidente do Supremo assiste ao esbulho e dele participa.