Das línguas arrancadas aos empregos perdidos
Alceu A. Sperança
Para que serviram os governos dos ricos, das oligarquias, dos reis e imperadores? É imensa a crônica de brutalidade da "civilização". É horrível, mas vejamos algumas formas de "castigo" a quem não compactuava com os ricos de plantão no controle da sociedade, registrados apenas numa "sessão" de doutrinação "religiosa" ocorrida no Rio Grande do Norte em 1645:
O colono Baracho foi amarrado a uma árvore e, ainda vivo, teve a língua arrancada. Matias Moreira teve o coração arrancado por não concordar em abjurar a fé católica. Espatifaram, com o pau, a cabeça de uma criança, filha de Antônio Vilela. A filha de Francisco Dias teve o seu corpo partido em duas partes. A mulher de Manuel Rodrigues Moura, depois que o marido morreu, teve cortados os pés e as mãos. A vítima sobreviveu, ainda, três dias ao lado do marido morto. Uma moça, muito bonita, foi vendida e a moeda de troca foi um cão de raça.
Os romanos reservavam a cruz para os escravos e para os piores criminosos (Cristo foi uma de suas vítimas). Os gregos usavam metal incandescente, como aquele usado para marcar o gado. Também eram castigos entre os gregos o envenenamento, a morte a pauladas, o apedrejamento, o lançamento em precipício, o estrangulamento, a decapitação e o enterro em vida. Os pelourinhos, tão conhecidos no Brasil, eram usados para açoitamentos públicos.
Hoje as coisas não mudaram tanto. A plutocracia acumula nas mãos de poucos as riquezas geradas coletivamente: seus bancos faturam horrores, financiam campanhas eleitorais, absorvem terras, transnacionalizam fábricas, empregos, genes. Estão na raiz da violência que corre solta por aí, que força-tarefa repressiva alguma vai resolver, porque seus fundamentos desumanos não estão resolvidos.
O grau da exclusão varia bem pouco no tempo, apenas se tecnifica. No Paraná, no pós-Guerra, dizia-se aos posseiros (o MST da época): "Por que vocês arriscam a vida indo tomar a terra de um bacana paulista cheio de jagunços quando podem trabalhar como meeiros ou empregados deles?" Hoje, você se forma em Pedagogia, Direito, Jornalismo e Comércio Exterior, canudo na mão e nenhum emprego, e alguém lhe diz: "Seu vagabundo! Vai lá na avícola, pois só não trabalha quem não quer!"
Arrancar a língua, tirar o coração, vender a moça, esquartejar, torturar e humilhar, práticas antigas, foram evoluindo para alguns tipos de torturas e castigos igualmente horríveis no admirável mundo novo da modernidade: concentração da renda, aumento das desigualdades, cassetete da polícia e exposição na TV. Mas a plutocracia quer poder, mais poder, muito mais poder. Mais línguas extirpadas (direitos humanos afrontados), corações arrancados (empregos extintos) e gente, gente às pampas, humilhada e entregue à degradação da desigualdade. Não é estranho que estejam ainda a chorar as Marias e Clarices dos excluídos comuns.
**
(Do livro A Maldição Brasileira, Projeto Livrai-Nos! Ilustração: http://historiacolegiojk.blogspot.com.br )
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br