Lava-Jato, a caixa de Pandora
Alceu A. Sperança
A Operação Lava-Jato, atacada por tecnicalidades não desprezíveis mas moralmente defensável, é fruto da aversão popular à corrupção. Ela abriu a sangria que derrubou até o idealizador de seu estancamento - o senador Romero Jucá. Na superfície, a sangria consiste em fazer a economia nacional virar caso de polícia e impedir empresários em desgraça de celebrar contratos com o poder público, afetando reputações, empregos e obras de infraestrutura.
No subterrâneo dessa patriótica preocupação, o desejo de evitar que o MDB e outros vetores das coalizões montadas no franciscanismo invertido ("é recebendo que se dá") fossem arrastados de vez pela onda moralista, que empurrou o presidente Michel Temer para um nível de impopularidade ainda pior que o da ex-presidente deposta.
A chapa Dilma-Temer sangrou fortemente, até a inanição administrativa que paralisou o governo e as botas de cimento que brecaram a ex-presidente de decolar ao Senado. Faz parte da sangria o lamento de que o Brasil não repetirá mais os pibões anteriores à mãe das crises - que arruinou a ditadura no quinquênio 1980-1984 -, nem dos voos de galinha encerrados em 2010, quando passa a se esgotar o superciclo das commodities.
Antes da LJ, argumentos diversos se apresentavam para explicar o atraso nacional: patrimonialismo, sangue índio, pele amorenada, colonização lusa... Aí ela surgiu, caixa de Pandora e muleta que explica ou justifica quase tudo: desindustrialização, queda na armadilha da renda média, desigualdade, fim do bônus demográfico, infraestrutura paralisada, queda nos investimentos, zika, sarampo... e agora até a democracia ameaçada pelo fascismo!
É verdade, porém, que tudo tem consequências. Em 1767, o Marquês de Pombal conseguiu dar fim ao "mecanismo" estabelecido pelos jesuítas para explorar a Amazônia e seus povos. Abriu então uma "sangria" que culminou com a demonização e expulsão dos padres.
A "Operação Fora Jesuítas" deu na desorganização da sociedade e da economia regional. Como as empreiteiras que antes da LJ comandavam a dinâmica das obras no país, os jesuítas treinavam, coordenavam e exploravam a totalidade da cadeia de produção das lucrativas drogas da selva.
Banidos, deixaram o vazio de uma longa crise na economia - sangria que só foi estancada com o ciclo da borracha. Este, aliás, não veio por indução do Estado nem pelas livres forças do mercado, pois o grudento e sujo látex era mais desprezado que corrupto após condução coercitiva. Seu uso positivo só começou com o equivalente a uma experimentação marginal que deu em luvas e botas impermeáveis. Só então Pandora abre campo à cornucópia.
Mudanças radicais quebram ovos para fazer fritadas. A LJ, ao passar o rodo emborrachado no "sistema" (ou "mecanismo"), alguma coisa limpou, mas a sangria continua. Há feridas abertas e fortunas surrupiadas a devolver. Virá um novo ciclo de robustez na economia? Com pesquisa e ciência talvez o Brasil possa criar luvas e botas impermeáveis à umidade da LJ, à lama da corrupção e ao grudento atraso.
(Artigo publicado também no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista alceusperanca@ig.com.br