Miséria, neoescravidão e bactérias
Alceu A. Sperança
Os programas de promoção social ficarão sempre aquém das possibilidades se os seus operadores não incorporarem ao pensamento, à sua prática e até em suas vidas alguns fundamentos teóricos importantes.
O primeiro deles é evitar aquilo que Luiz Gonzaga e Zé Dantas já avisavam na canção Vozes da Seca: "Mas doutô uma esmola a um homem qui é são / Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão (...) / Dê serviço a nosso povo (...) / Dê comida a preço bom".
O sociólogo chileno José Bengoa forneceu uma boa contribuição no sentido de fazer com que programas sociais venham a ser bem-sucedidos. Bengoa, então a serviço da ONU, pregou a "deslegitimação" da miséria e a reedição do movimento abolicionista da escravatura do século XIX para adaptá-lo ao combate à pobreza no mundo atual.
O quê?! Como fazer a miséria deixar de ser legítima? Uma nova campanha abolicionista para quê, se não há mais escravos?
O escravo do nosso tempo, segundo a ótica de Bengoa, é o excluído aqui da nossa periferia, esse que quando resolve reagir a todas as sacanagens que as "elites" fizeram com seus antepassados acaba escrachado pelo "jornalismo policial" e preso.
Membro da Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos e presidente do Grupo de Estudo da Extrema Pobreza e Direitos Humanos, ambos ligados à ONU, Bengoa não temeu afirmar que tudo o que se fez ou se está fazendo hoje no mundo em nome do suposto combate à pobreza não vale nada. Isso mesmo: nada.
A realidade planetária são as violações dos direitos humanos que estão na raiz da miséria. No Brasil de hoje há mais de 30 milhões de crianças e adolescentes vivendo entre a linha da pobreza e a indigência total.
Quem prefere perder tempo com as baboseiras do noticiário "político" e fica de costas para esse povaréu todo, um enorme país de humilhados e despossuídos a cercar nossas mansões e tomar os tênis de marca de nossos filhos nos portões das escolas, acabará se arrependendo amargamente de ter deixado de fazer sua parte para melhorar este mundo.
Por isso, Begoa sustenta a necessidade de criar um sistema jurídico internacional de defesa dos direitos humanos, a começar por uma nova luta abolicionista, para libertar as crianças e jovens do destino de angústia e revolta que se anuncia se esta geração não for capaz de dar conta de suas responsabilidades.
Nenhum sistema religioso, político ou econômico até hoje testado no planeta conseguiu resolver a contento os graves problemas da humanidade, que se resumem a um único item: onde os direitos humanos são pisoteados, abunda a miséria e prevalece a injustiça.
Apesar da impressão errônea de que "direitos humanos são coisa de bandido", direitos humanos são coisa de... humanos. É desumano negá-los a quem mais precisa de seu exercício, como os miseráveis e/ou vulneráveis.
Abolir a neoescravidão e acabar com a legitimidade da miséria é uma utopia possível ou o impossível mais uma vez terá que ser realizado por quem ainda não soube que seria impossível?
Até recentemente, a noção de que as bactérias intestinais podem manipular o cérebro de um ser humano seria considerada uma impossibilidade. Quem afirmasse isso correria o risco de ser linchado ou metido em hospício.
Ei, espera aí com essa camisa de força: não sou eu quem diz isso! Os cientistas estão dizendo! Acreditavam que lombrigas mudam opiniões, mas se recusam a acreditar que as bactérias também podem fazer o mesmo?...
Estudar um pouco mais as bactérias, não aceitar a eternização da miséria e abolir a neoescravidão são tarefas possíveis.
(Do livro A Maldição Brasileira - Projeto Livrai-Nos! ilustração: r7)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br