A nova era militar
Rudolfo Lago e Wilson Lima
Quarta-feira, 24 de outubro. A quatro dias do segundo turno das eleições presidenciais, o Alto Comando do Exército reunia-se para decidir sobre promoções do alto oficialato. Da cadeira de rodas, com as dificuldades impostas por seu estado de saúde, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, pede a palavra. Áquela altura, ninguém na sala tinha mais muitas dúvidas de que o domingo consagraria a eleição do capitão da reserva Jair Bolsonaro, do PSL, como novo presidente da República. Uma eleição que, 33 anos após o fim da ditadura, traria os militares de volta ao centro do poder. Bem longe de uma comemoração, Villas Bôas adotou um tom sério. "Temos que tomar o máximo de cuidado com a preservação da imagem da nossa instituição", advertiu o comandante do Exército, emendando com uma recomendação. "Seria prudente que colegas da ativa não participassem diretamente do governo".
O comandante sabe que a orientação, não uma ordem, dificilmente será cumprida. A manifestação do comandante do Exército, no entanto, é a tradução de como as Forças Armadas enxergam o atual momento político em que um capitão reformado, com amplo apoio de integrantes da caserna, ascende ao poder. É inegável que o prestígio dos militares no governo Bolsonaro atingirá patamares inéditos desde a redemocratização do País. Mas, numa demonstração de arraigada maturidade institucional, eles se revelam conscientes do seu papel. Entendem que a organização do poder político é tarefa dos civis, não dos militares. E que esse preceito do estado democrático de direito não é alterado pela simples presença de militares reformados na política. É, na essência, o que difere a nova era militar dos tempos de trevas da ditadura. Hoje, as Forças Armadas rejeitam qualquer possibilidade de futura intervenção militar, como se a presença de militares reformados na política pudesse representar um primeiro passo para a tomada do poder civil por integrantes da caserna. "Ao contrário do que aconteceu em 1964, esses militares chegarão agora ao poder pelo voto, pela via democrática, e não parece haver espaço para um retrocesso que não os faça ter que respeitar as regras do Estado Democrático de Direito", observa o professor de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Fico. "Hoje, a sociedade e as instituições têm condições de se contrapor aos excessos", continua o professor. Em suma, as instituições demonstram solidez suficiente para evitar um regresso a um passado que o País quer deixar definitivamente no retrovisor. "Eles (os militares) sabem que terão de governar na democracia. Todas as pesquisas apontam que essa mesma maioria que levou esse grupo ao poder apoia a democracia", conclui o estudioso.
A saudável manutenção de uma distância regulamentar do poder é alimentada ainda pelo temor do Alto Comando Militar de que se crie uma expectativa muito grande de que os militares serão capazes de resolver os problemas nacionais, como num passe de mágica. Problemas complexos e que não serão resolvidos com soluções fáceis por uma instituição que também sofre os sintomas da crise econômica e hoje encontra-se desaparelhada para exercer da forma ideal mesmo as suas ações específicas na área de defesa do País. A experiência de já ter ganho destaque na área de segurança pública com a intervenção no Rio de Janeiro já não é avaliada pela cúpula militar como positiva. Os militares foram postos à frente da solução de um tremendo abacaxi, sem a autonomia e o efetivo necessário. Obtiveram alguns resultados positivos, como a redução do roubo de cargas.
Mas não em um nível que fosse realmente perceptível para a sociedade. É esse grau de frustração que a cúpula militar teme no momento em que os militares ganharão novamente destaque em um governo, agora pelo voto.
Nada que impeça, evidentemente, a incorporação de militares da ativa ao Ministério de Bolsonaro, especialmente nos cargos de segundo escalão. O primeiro escalão será formado pelos militares da reserva que formam o chamado "Grupo de Brasília": o vice-presidente general Hamilton Mourão, o general Oswaldo Ferreira, provável futuro ministro da Infraestrutura; o general Augusto Heleno, futuro ministro da Defesa, e o general Aléssio Ribeiro Souto, ainda sem cargo definido. O general Aléssio chegou a ser cotado para o Ministério da Educação. "Os militares têm a disciplina que nós precisamos no momento, principalmente na área de infraestrutura", considera o vice-presidente do PSL, Gustavo Bebbiano.
Quem conhece os perfis dos militares mais próximos de Bolsonaro e que terão papel de destaque no próximo governo aposta na influência do general Heleno. "É, de longe, o mais preparado ali. E, sem dúvida, o mais ponderado", disse a ISTOÉ um oficial de alta patente do Exército. Nas Forças Armadas, Heleno é visto mesmo como um homem de centro, bem menos radical que o próprio Bolsonaro. É tido como bom comunicador, tendo, inclusive, mais trânsito na imprensa que a maioria dos integrantes do núcleo duro do governo. "Os demais generais do Grupo de Brasília são também muito preparados. O problema é o temperamento", diz esse oficial. "O general Mourão é alguém em que eu confiaria plenamente no comando de uma tropa no meio de uma batalha. Agora, numa função que exige discrição como a de vice-presidente?", completa.
Uma coisa é certa: no novo governo, se bate continência. Para o bem e para o mal. O capitão Bolsonaro estará cercado de generais. "Os generais sabem que o comandante agora é o capitão. Mas como se comportará o capitão, acostumado que foi na vida militar a receber ordens dos generais?", questiona um oficial do Exército. Como se encaixará a lógica militar na realidade de um mundo civil e democrático, essa é a grande incógnita.
Rudolfo Lago e Wilson Lima são jornalistas da revista IstoÉ