Nossa grande culpa
Alceu A. Sperança
O pessoal fala muito que o chato, incômodo Thomas Hobbes (1588-1679) cunhou a expressão "o homem é o lobo do homem", mas esse conceito já havia sido exposto bem antes, pelo dramaturgo latino Titus Maccius Plautus (254-184 a.C.). Hobbes talvez tenha sido o mais famoso dentre os que acham que o homem não tem jeito, que as coisas são assim mesmo e nunca vão mudar, cunhando sua máxima de que "a condição do homem (...) é a da guerra de todos contra todos". Ou seja, com seus semelhantes e sobras para a natureza.
Para contrariar essa coisa horrível vem em nosso providencial socorro o velho/jovem Marx com um conceito bem superior e mais alvissareiro: "A sociedade atual, muito longe de ser um cristal sólido, é um organismo suscetível de mudança e em permanente processo de transformação" (prefácio à primeira edição de O Capital, 1867).
Será que vamos nos render aos muito-vivos de gravata e colarinho engomado que assaltam os cofres públicos e aos mortos-vivos maltrapilhos que roubam nossos varais por terem sido excluídos das riquezas pelos muito-vivos? Acreditar que a corrupção do alto coturno e o desespero famélico dos excluídos são condições naturais, próprias da "natureza humana", e que não há mais nada a fazer senão atirar em quem chegar perto e também tirar uma casquinha do bolo aprontando alguma contra nosso semelhante não é algo que possa durar sem que um alto preço um dia venha a ser pago por essa burrice toda. Um preço que talvez não seja pago por nós, mas por nossos filhos ou no máximo netos. Cabe refletir se esta é uma herança justa e honrada para deixar a eles.
O antropólogo Marshall Sahlins demonstrou com especial esmero que nós podemos escolher entre a visão hobbesiana do homem (que seria o "lobo" de seu semelhante) ou agir no sentido marxiano de que a sociedade não é um cristal sólido, mas um processo sujeito a mudanças. Para Sahlins, a cultura é algo historicamente reproduzido na ação, que você pode repetir, canibalizar (vide Manifesto Antropófago da Semana de Arte Moderna de 1922) ou melhorar. Recebo pelo nosso e-correio um interessante apanhado sobre a vida em sociedade em gerações anteriores. Alguns trechos:
1) As pessoas abanadas, como se vê nos antigos filmes. A explicação é o mau cheiro que as partes íntimas exalavam por debaixo das saias. As partes não eram higienizadas devidamente com o costume de não tomar banho por causa do frio. O cheiro era camuflado pelo abanador, que além de espalhar o bodum do corpo e o mau hálito espantava os insetos.
2) O buquê da noiva - A maioria dos casamentos ocorre no mês de junho (no hemisfério Norte, início do verão) porque o primeiro banho do ano era tomado em maio. Em junho, o cheiro das pessoas ainda estava tolerável. Entretanto, como alguns odores já começavam a se exalar, as noivas carregavam buquês de flores junto ao corpo, para disfarçar o mau cheiro. Daí porque maio é o "mês das noivas" e sabemos a razão da noiva carregar aquele buquê.
3) Salvo pelo gongo - Os mortos, para não ser enterrados vivos, tinham amarrada uma tira no pulso, que passava por um buraco no caixão e ficava amarrada num sino. Após o enterro, alguém ficava de plantão ao lado do túmulo durante uns dias. Se o indivíduo acordasse, o movimento de seu braço faria o sino tocar. O gongo.
São algumas curiosidades com a intenção de mostrar que a sociedade evolui e não mantém maus hábitos eternamente. Por isso, a corrupção que tem como evidências mais aparentes o nepotismo e o inchaço da máquina pública dos muito-vivos, que dão o exemplo para a roubalheira que invade nossos quintais através dos mortos-vivos da cachaça e do crack, não estão destinados por alguma diabólica divindade a se eternizar.
Podemos reagir contra isso ou deixar essa herança vergonhosa para nossos filhos e netos. A escolha é nossa. Já dizia o sábio Darwin: "Se a miséria de nossos pobres não é causada pelas leis da natureza, mas por nossas instituições, grande é a nossa culpa". (Do livro A Maldição Brasileira, Projeto Livrai-Nos! Ilustração: Plauto)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br