O debate que faltou na eleição
Mangabeira Unger
O Brasil precisa mudar de rumo. Para onde e como? Esse deveria ser o tema central do debate na sucessão presidencial. Não tem sido. Dos candidatos à Presidência, Ciro Gomes é o único que insiste.
Nos governos do PSDB e do PT, o Brasil adotou variações da mesma estratégia de desenvolvimento econômico: complacência com a desindustrialização do país, aceitação de matriz produtiva baseada na produção e exportação de commodities, tentativas frustradas de melhorar a situação fiscal do Estado na esperança de ganhar a confiança financeira, socorro aos pobres sem sua capacitação e descuido com políticas universais como o SUS, oferta de mais escola de baixa qualidade para mais gente.
Involução produtiva, extrativismo desindustrializante, rentismo financeiro, reformismo fiscal acanhado e inconsequente, pobrismo ou assistencialismo na política social, quantidade sem qualidade no ensino. De um governo para outro variou apenas a ênfase nos elementos desse receituário.
Agora, o Brasil precisa voltar-se para outra estratégia de desenvolvimento: à democratização do consumo há de seguir a democratização da produção --a qualificação do aparato produtivo associada à ampliação do acesso às oportunidades econômicas e educacionais.
Reindustrializar, sim, mas não para voltar à indústria convencional, de meados do século passado, nem para privilegiar a manufatura avançada em detrimento dos serviços e da agricultura; para dar os primeiros passos rumo ao que ainda não existe em qualquer país: forma aprofundada e disseminada do novo vanguardismo produtivo - a economia do conhecimento.
Flexibilizar as relações de trabalhar sem precarização do emprego ou aviltamento dos salários. Reconstruir a maneira de aprender e de ensinar no Brasil: pôr capacitação analítica no lugar de enciclopedismo raso e dogmático. Radicalizar no imperativo do realismo fiscal: não para ganhar a confiança financeira, mas para não depender dela e para poder ousar na estratégia de desenvolvimento.
A democratização do consumo se pode fazer só com dinheiro. A democratização das oportunidades exige inovação institucional na maneira de organizar a economia de mercado. Só o que deixa legado institucional perdura na vida das nações. O Brasil não conhece momento de construção institucional abrangente desde Vargas. Vivemos em meio aos destroços do corporativismo varguista.
O PT quis humanizar o mundo econômico e social talhado por esse corporativismo em ruínas. Agora, porém, a tarefa é construir instituições econômicas que nos permitam fazer, de maneira socialmente inclusiva, a travessia para as formas avançadas da produção e instituições políticas que não precisem de crises para facultar mudanças.
Os governos do PT e do PSDB abordaram os brasileiros como beneficiários a cooptar em vez de abordá-los como agentes a equipar. Os pobres receberam o dinheiro dos programas sociais; as corporações, os direitos adquiridos; os grandes empresários, o crédito subsidiado e os favores tributários; os rentistas, os juros astronômicos. O Brasil estagnou, resvalando em primitivismo produtivo e educacional que negou braços, asas e olhos a nosso recurso mais importante: a assombrosa vitalidade da nação.
Como passar do primarismo produtivo para a qualificação produtiva, da democratização da demanda para a democratização da oferta e portanto das oportunidades para trabalhar, produzir e aprender, do realismo fiscal como garantia de obediência a ortodoxias postiças ao realismo fiscal como condição de rebeldia nacional, da política manejada apenas como partilha de recursos escassos à política entendida e praticada também como construção institucional e do hábito de cooptar os brasileiros ao esforço para empoderá-los - foi esse o debate que faltou na eleição.
Roberto Mangabeira Unger é professor na Universidade Harvard (EUA) e ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos dos governos Lula e Dilma