No armário, pequenos e grandes esqueletos
Alceu A. Sperança
Nos dias que vivemos, o que poderia preocupar mais que o terrível aquecimento global (AG)? Mas talvez fosse necessário perder um pouco de tempo com nossos próprios umbigos antes de simplesmente espinafrar o AG e reconhecer que ele é, afinal, um subproduto dos prazeres que auferimos com a fabulosa Revolução Industrial.
Se lançarmos um olhar sobre nós mesmos e à nossa volta, constataremos que cada um de nossos pequenos ou grandes prazeres produz resíduos - e nem sempre os menos agradáveis às narinas são os piores.
Um daqueles "inocentes" sacos de plástico que atiramos por aí depois de tirar dele o objeto do prazer que acabamos de comprar. Aquele papel de bala que o presidente descartou. O incômodo pacote de chips de cujo conteúdo nossos piás aspiraram obesidade e um futuro câncer, atirado (o pacote, não a pança e o câncer) ao deus-dará. A guimba de cigarro e suas respectivas cinzas jogadas por aí. Tudo isso é a face local, cotidiana, bem próxima a nós, correspondente ao pecado dos políticos (meros fantoches dos conglomerados econômicos) manifestado no AG.
O AG é o equivalente, para as grandes corporações, à nossa atitude de gastar energia à toa, fazer barulho para os ouvidos dos vizinhos, estressar o cão e fazê-lo infernizar a vizinhança, dar porcaria às crianças só porque a TV diz que elas são "iradas".
Se o presidente estadunidense e as grandes corporações têm inúmeros esqueletos em seus armários, nós também temos os nossos esqueletinhos e culpa por aqueles tsunamis todos. À medida que o planeta esquenta, as conseqüências vão aparecendo em sua cara suada: secas recordes, incêndios dantescos, enchentes monumentais. Na Ásia, há algo além do tsunami: cerca de cem mil pessoas morreram de doenças respiratórias por causa de uma misteriosa "nuvem marrom", segundo revela Jeremy Rifkin, uma espécie de Grilo Falante para os Pinóquios desta geração.
Os coletores de produtos recicláveis são - ao lado das crianças de mães que não veem novelas e pais que não fumam - a grande esperança da humanidade. São entes iluminados que empurram seus carrinhos por aí.
Do jeito que a coisa começa a andar, apesar dos pesares, a gente vai acabar dando conta de dar um rumo melhor a este planeta tão estuprado e torturado - em termos humanos, estupro e tortura são tão hediondos quanto o AG. Abaixo o AG, viva o agir. Há que agir, gente. A começar por resolver os esqueletos dos armários. Os do armário local e os do armário global. (Ilustração: Arquivo ONU)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br