É um dever tratar muito bem os turistas
Alceu A. Sperança
Surge volta e meia um debate absolutamente irrelevante nas cidades: o setor de turismo deve fazer parte da Secretaria Municipal da Cultura ou da Indústria e Comércio? Partindo dessa dúvida absolutamente bestial, como diriam os "patrícios", poderíamos embutir nessa questão outras perguntas. Por que o turismo não faz parte da Educação, já que é necessário educar toda a população para bem receber os turistas? Sem educação, como trataremos bem os gringos e seus dólares/euros?
Vamos em frente: como tratar bem os turistas se continuamos atropelando gente e fazendo roleta-paulista por aí, agora com a presunção de que não seremos multados nem advertidos pela autarquia municipal do trânsito? Não seria, então, o caso de atrelar o turismo ao trânsito? Ali, sempre é válido tentar dar um pouco de educação ao pessoal que lida com o tráfego.
Mas o turismo talvez pudesse ser reivindicado pela Secretaria do Planejamento, pois a cidade não está preparada nem para o convívio dos cidadãos "aborígines" - por que cargas d?água estaria para os estranjas? Claro que a Secretaria de Assuntos Comunitários também poderia reclamar o turismo, na medida em que depois de dar cidadania e civilidade aos "agentes ecológicos" (catadores de papel) pode também transformar os "flanelinhas" em "recepcionistas turísticos", inclusive com noções de gringuês.
A Secretaria da Saúde, por sua vez, reclamaria o turismo alegando que alguém poderia vir do exterior trazendo a gripe aviária, sendo necessário criar, talvez junto com a tal Guarda Municipal, um cadeião todo almofadado, tipo cinco estrelas, decorado com retratos de mulatas seminuas e motivos paisagísticos tropicais, para que os gringos visitantes ficassem de quarentena até que o risco de transmitir a perigosa doença fosse contornado.
A Secretaria do Meio Ambiente poderia com justa razão reivindicar o turismo para motivar a visitação aos velhos e aos novos parques temáticos de preservação das fontes e dos fundos de vale. A Secretaria das Finanças poderia baratear o custo do desassoreamento do lago cobrando de cada turista um pedágio adicional: um caminhonaço de lodo tirado do lago lhe valeria o título de Cidadão Honorário Sanepariano do Município.
E aí cairíamos no óbvio: a Câmara Municipal teria a força de dezenas de políticos vitoriosos, com o peso do voto popular, para exigir a titularidade do turismo, na medida em que poderiam receber os deputados que se comprometeram a defender sua região na Câmara Federal e na Assembleia Legislativa e no máximo fazem alguns passeios turísticos à sua base e deixam escapar verbas federais.
Temos secretarias demais, departamentos demais, gastos demais com caciques e pouca esperteza na articulação entre as instâncias da administração, que deveriam jogar juntas, como as peças de uma equipe que pretende ganhar uma competição.
O turismo é uma grande fonte de renda. Será nosso grande negócio se soubermos lidar com ele. Mas não é preciso criar nenhum departamento de turismo nem na Cultura, nem na Indústria e Comércio, nem em qualquer outro lugar: basta cumprir uma pequenina lei, a exemplo das Três Leis da Robótica, de Isaac Asimov, com apenas três artigos:
"Art. 1° - Nesta cidade, toda pessoa residente no perímetro municipal será tratada como turista, com todos os seus direitos de cidadão, mordomias e salamaleques assegurados;
"Art. 2° - Todo visitante e turista será, para todos os efeitos, tratado como o é todo cidadão local.
"Art. 3° - Revoguem-se as disposições (e as patetadas) em contrário."
Não sei se essa "lei", tecnicamente, tem fundamento, pois leis não podem embutir ironias. Mas deveria começar a vigorar imediatamente, ao menos em nosso coração. (Do livro A Maldição Brasileira)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br