EUA, Golias ou Gulliver, a pedrada é certa
Alceu A. Sperança
Se neste exato momento lhe aparecer pela frente um jovem falando coisas incompreensíveis e prometendo mudar o mundo com sua ajuda, o que você faz?
A prudência o faz duvidar da promessa, mas a sabedoria aconselha a tentar entender o que diz.
Se ele fosse um chinês chamado Liang Wenfeng, por exemplo, você tentaria entender por que desde 2021 ele compra milhares de processadores gráficos da Nvidia. Dirá ele que pretende construir um cluster de 10 mil chips.
Ou seja, um maluco criando um monstro. Por isso nenhum amigo o levou a sério quando ele garantiu que ia mudar o mundo com a geringonça. E continuou comprando processadores como um acumulador junta lixo.
Um dia, aparentemente curado dessa doideira, Wenfeng criou um desses fundos de hedge hoje tão comuns para quem quer proteger seu dinheiro.
O nome do fundo era pretensioso: High-Flyer, que podemos traduzir por Sujeito Vencedor. Mas pareceu razoável aos amigos. Afinal, a educação financeira manda apostar em diversas cestas diferentes para equilibrar rendimentos e sobreviver à lei da selva das finanças mundiais.
Caindo como um pato
Foi com a grana levantada junto aos amigos dispostos a botar alguns ovinhos em sua pequena cesta HF que Wenfeng criou a startup DeepSeek (Busca Profunda), com a qual propunha algo também razoável: fomentar o uso e a acessibilidade à tecnologia.
Também pretensiosa, a startup prometia ser melhor que o Google. Mas ser pretensioso, a não ser que o sujeito esteja doente da Síndrome de Húbris*, não é defeito para um bacharel e mestre em engenharia eletrônica e da informação, caso de Wenfeng.
E assim surgiu o inesperado dragão que no final de janeiro atacou a garganta da poderosa águia americana e pôs no chão o sujeito mais arrogante e pretensioso do mundo - Donald Trump.
O pato acabava de assumir a Presidência dos EUA e viu suas queridas bigtechs amargar uma queda jamais suspeitada: segundo a Bloomberg, em apenas um dia as 500 pessoas mais ricas do mundo perderam US$ 108 bilhões.
Só quem morre em segredo não desaparece
É da história a regra de ouro que os grandes um dia caem. Os babilônios dominavam o mundo até ser vencidos por Alexandre, o aluno de Aristóteles, de onde se conclui que era um mestre militar por ter a sabedoria científica a orientá-lo. Tão sábio que nunca foi vencido. E se morreu, mesmo, poucos souberam, pois o corpo desapareceu.
A Bíblia dos religiosos conta que uma pedra desferida por um pequeno garoto derrubou o poderoso Golias, de 3 metros de altura. O autor da pedrada também foi poderoso, mas era atacado até pela própria família. Perto da morte, o rei Davi aconselhou o filho Salomão a se vingar de todos. Sábio, Salomão preferiu se dedicar às 700 esposas e 300 concubinas.
Na literatura, o Gulliver de Jonathan Swift era um gigante para o povo de Liliput, formado por homúnculos minúsculos. Desunidos, eles se dividiam em dois grupos polarizados.
Os conservadores (vulgo direita) exigiam que o ovo cozido começasse a ser quebrado por baixo, pela parte mais larga. Os liberais (vulgo esquerda) insistiam em quebrar o ovo pela parte menor, por cima.
Os mais radicais atacavam e até queriam emparedar e fuzilar quem pensasse diferente. Já imaginou se isso não fosse apenas literatura e viesse a acontecer realmente entre seres humanos imbecilizados?
A Síndrome de Húbris
Gulliver não quis tomar partido nas brigas entre os grupos radicais. Considerado inimigo pelos dois extremos, foi condenado à cegueira.
Quem não adere a um dos bandos é visto como perigoso por não ver as qualidades sagradas e supremas do mito santo e genial que cada bando transforma em seu deus na Terra.
Diz-se que os homens poderosos sofrem de uma doença mental chamada Síndrome de Húbris. Antes ela ocorria mais em gente rica e inútil, a nobreza, que se achava superior aos que trabalhavam para viver e comprar processadores.
O doente de Húbris demonstra muito orgulho de si próprio, de seu mito, partido ou time de futebol. É arrogante, ofensivo e se sente superior a quem pensa diferente dele. Em estados mais graves, revela desequilíbrio emocional quando sua vontade, crença ou ilusão é contrariada pela implacável realidade neutra e isentona.
Quando não são inelegíveis nem condenados pela Justiça, são sérios candidatos ao poder ou (depois) ao hospício. É diferente de acreditar em algo ou alguém, descobrir que foi enganado por uma lorota e rir disso. O doente de Húbris é fanático: segue acreditando até quando seu mito fracassa. Prefere morrer com ele a aceitar que falhou.
Cuidado ao quebrar o ovo
Muitos condenados pelo 8 de janeiro a penas superiores a dez anos já poderiam estar livres, mas rejeitaram acordos com a Justiça por se manter fiéis ao golpismo fracassado (https://x.gd/9QubL).
Cegaram e urinaram nos bens da República e ainda acham que têm razão. Em sua ilusão liliputiana, acham que as Forças Armadas vão depor o presidente e prender quem pensa que o ovo cozido deve ser quebrado não pelas extremidades, mas pelo meio.
Não entendem que nenhum militar decente trairia seu honroso juramento à Constituição, pois assim estaria desmoralizado perante a família e a pátria. Por que perder o respeito geral e desgraçar a carreira se o presidente pode ser facilmente afastado por uma decisão majoritária do Congresso?
Jango, Collor e Dilma foram para o vinagre pela via congressual - por que seus sucessores também não iriam?
Se o mundo sobreviver aos acontecimentos em curso, em algum futuro alguém vai atirar a próxima pedra e acertar o dragão chinês do acumulador Wenfeng.
Um indiano, talvez, ao descobrir que só gente muito burra não respeita a opinião dos outros: quebrem o ovo cozido do jeito que bem quiserem, ora bolas! (Ilustração: Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br