Esquerda e direita estão mortas? Se estão, favor não cuspir nos cadáveres
Alceu A. Sperança
No auge da campanha americana, uma certa Nayara Andrejczyk, musa dos pistoleiros, "brasileira de nascimento e americana por lealdade", pediu a Donald Trump, disfarçado de garçom do MaC, para não deixar os EUA virarem o Brasil.
Se um dia os EUA adotarem o semipresidencialismo semiparlamentarista mediado pelo Judiciário, regime real em vigor no Brasil, impossível não pensar que ela deu a ideia.
Eleições, lá como aqui, são um reino à parte, em que o marketing controla todo o ambiente. O eleitor não influi em nada, a não ser por escolher, manipulado pela propaganda, quem melhor usar seus (do eleitor) algoritmos e perfis.
Por aqui, houve um tempo em que a "esquerda" (light, fingida, meia-bomba) vencia eleições (https://x.gd/gDltw) , mas jamais governou. Na verdade, depois que a ditadura do 1º de abril morreu de inanição ficou praticamente inútil eleger um presidente.
Fora do Brasil também. Note-se o caso da Argentina. Cuspindo fogo pelas ventas, o então candidato Javier Milei prometeu: "Não faremos negócios com países comunistas", jurando que seu país não teria mais relações com a China.
Chegando ao governo, Milei descobriu que a Argentina depende da China e dos seus contratos de swap cambial para continuar honrando pendências com o FMI. Milei, de joelhos, agradeceu humildemente ao presidente chinês, Xi Jinping, pela ajuda.
Velas para as falecidas
Por sua vez, o maquiavélico Donald Trump fez uma declaração assustadora em julho, ao abrir a campanha às eleições deste novembro:
"Saiam e votem. Em quatro anos, vocês não precisarão votar de novo. Nós vamos consertar tudo tão bem que vocês não precisarão votar".
Traduzindo: ele prometeu que não haverá mais eleições depois dele. Dizer isso sem ser preso e banido da política é sinal de que não são discursos ou leis que governam o mundo, mas a grana investida na conquista dos mandatos.
Se dependesse dos discursos da campanha, a única saída dos EUA para continuar uma nação democrática seria seguir a sugestão da musa dos pistoleiros: transformar os EUA num novo Brasil, adotando o semipresidencialismo semiparlamentarista.
As regras do jogo eleitoral que vigoram no país que a musa abandonou para levar sua bela lealdade à Gringolândia é garantir ao Centrão o poder nas três instâncias: federal, estadual e municipal. Por conta disso e muito mais, em termos eleitorais não faz mais qualquer sentido referências sérias a "esquerda" e "direita". Só merecem velas.
O aviso de Trump: "Uni-vos!"
Não que antes fizessem muito sentido. Nos tempos da ditadura do 1º de abril foram criados dois partidos artificiais: Arena e MDB. Na Arena ficavam os favoráveis ao governo e no MDB os opositores.
Isso é péssimo, pois se o governo vai mal, seu partido também vai. Quando o governo se confunde com um ambiente partidário toda a população sofre.
Com o passar do tempo, criou-se na Arena uma ala favorável à democracia, que se opunha à continuidade do regime de força, e no MDB um grupo conciliador com o poder autoritário.
Esse grupo conciliador, os Moderados, obtinha vantagens do governo em troca de passar parte da boiada autoritária. O Centrão tem origem nesse grupo do MDB e não na antiga Arena, que se suicidou em raro gesto de dignidade.
Dali para cá, ser contra ou a favor ao governo deixou de ter qualquer significado real, como também o rótulo "direita" ou "esquerda" não quer dizer nada fora da pauta de costumes.
Nem o discurso de campanha tem algo ver com a ação pós-campanha. Lula, na Carta aos Brasileiros, jogou o programa trabalhista no lixo e governou para os ricos.
Trump pareceu um Hitler ao anunciar que depois da vitória dele, "em quatro anos, vocês não precisarão votar de novo". Mas sua primeira declaração após a vitória, em números praticamente um empate, foi:
"É hora de deixar as divisões para trás. É hora da união". Uni-vos! Pode apostar: logo estará trocando figurinhas com o líder norte-coreano, Kim Jong-un e dando urticária em bolsonaristas.
Nazista x marxista
Trump lembra Richard Nixon. Vencendo os democratas com o mesmo estardalhaço, a direita esperava os EUA "great again" e ele celebrou as maiores vitórias políticas já obtidas por um presidente estadunidense.
Foi à China em 1972 e naquele momento o país oriental começou a se tornar grande pela primeira vez. Tirou os EUA da Guerra do Vietnã e entregou essa nação, unida, aos comunistas. De quebra, assinou com a URSS o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, que logo daria fim à absurda Guerra Fria.
Quando Nixon quis se manter no poder, usando a espionagem, o Caso Watergate cortou sua cabeça. Não respeitou as "quatro linhas", Mr. Dick!
Se o iludido eleitor da "direita" for nazista ou fascista já perdeu. As constituições nacionais criminalizam as atitudes e pregações antidemocráticas. Seus líderes não cumprirão o que prometerem.
Todos os eleitos pela direita têm o dever de defender valores democráticos (liberdade é o mantra central) para não ser alijados do cenário. Extremistas da direita gritam muito, mas são os moderados, de olho nas "quatro linhas da Constituição", que sobrevivem.
Se o eleitor de "esquerda" for marxista, por outro lado, de que lhe servem eleições? Peões rurais que aplicam sua renda em fundos agropecuários são donos das melhores fazendas. Basta um pingo de educação financeira para saber disso.
Os operários que põem as reservas da família em fundos de ações passam a ser donos das melhores e maiores indústrias.
Mendigos com aplicações em fundos de shopping e varejo são donos das lojas, das redes, dos centros de comércio.
O que é a soma da globalização mais revolução tecnológica senão "todos os povos, uni-vos"? Mais marxista que isso não existe e eleição alguma altera isso. Por isso Trump acabou de dizer: "É hora da união".
O que nos resta
Sendo o processo eleitoral mero reino da fantasia, da ilusão, das brigas de malucos se insultando, resta a quem tem consciência cidadã deixar de lado os bate-bocas inúteis e socorrer os desvalidos, os desempregados e os marginalizados por doença física ou mental, que enchem enfermarias e cadeias, nas quais são cooptados por "partidos" que se beneficiam do crime e não têm interesse em mudar o "sistema".
Aliás, enquanto a criminalidade render votos a quem finge combatê-la, ela só vai piorar. Sem saída, o que cabe a cada um é, no dia a dia, pressionar com energia e por todos os meios o Estado e a sociedade a multiplicar postos de trabalho, amainar o caos na saúde pública, ampliar a fluência nos transportes, qualificar a educação e tapar os buracos do saneamento básico.
Tudo isso depende mais de cada qual agir aqui e agora do que votar a cada dois anos. No mais, favor não cuspir nos cadáveres. (Ilustração: Joe Blum e Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br